Jornal Estado de Minas

COLUNA

O vazio da casa, memória de uma BH ''engolida'' pelos prédios

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Acabamos de entregar para uma construtora a casa onde minha família viveu por 51 anos. Com a morte de meu pai, há 11 meses, minha mãe escolheu morar com os filhos, em um regime de revezamento, ou, como ela gosta de dizer, guarda compartilhada. A casa localizada no Sion, em uma rua curta próxima à Av. Bandeirantes, levou muitos anos para ser concluída nas mãos de um habilidoso pedreiro, Raul, a quem amávamos e admirávamos por vários motivos, a começar pela competência até o grau de parentesco que nos aproximava ainda mais.




 
Era sonho de meus pais ter a casa própria, casa com terreiro com lugar para o enorme quarador de roupas e a jabuticabeira, esta com mais de 40 anos – espero poder transplantá-la na casa onde moro hoje. Meu pai tinha paixão por ela e ela correspondia produzindo seus frutos com frequência maior que a esperada. Também ele a molhava diariamente, conversava com ela e criava imagens com as folhas verdes e as lascas de casca seca. "O que você está enxergando aqui?", me perguntava. Muitas vezes eu acertava olhando a posição das folhas. "Dois pássaros voando", eu dizia sob os aplausos dele, que se divertia com nossa sintonia.
 
Casas no Sion se tornaram difíceis de encontrar e uma ao lado da outra uma raridade ainda maior. Nossa sorte foi que a resistência de meu pai em vendê-la ("só saio daqui morto", repetia, colocando os corretores para correr) encontrou apoio nos vizinhos, que só agora também decidiram se mudar. Quatro casas juntas darão lugar a um belo e robusto prédio de apartamentos de luxo.
 
Aos poucos fomos tirando nossos pertences da casa, muitos sem saber que destino dar, tão simbólicos e ao mesmo tempo desnecessários. A própria casa perdeu o sentido manter, visto que uma reforma seria inviável tamanha a necessidade de reparos.




 
Me mudei para lá com 8 anos, em uma época em que o bairro era no fim do mundo, o que dava todo sentido ao córrego onde nos esbaldávamos quando queríamos nos sujar, o Acaba Mundo, que virou avenida.

Havia montanhas que escalávamos e colhíamos mamona, munição para as guerras que travávamos contra os meninos da rua quando eles nos aborreciam. Na verdade, não era preciso uma razão usar os meninos como alvo. Fazíamos guerra de mamona e de barro simplesmente porque era legal.
 
Apesar de ter me mudado de lá há 36 anos, aquela ainda era minha casa, pois assim é casa de pai e mãe. A todo momento lembramos aos nossos filhos, que se foram há nove anos, que nossa casa é o local para onde eles podem voltar, fugir ou simplesmente se aconchegar por um momento que seja. Assim aprendi com meus pais.
 
Não foi fácil transpor aqueles portais, corredores, recantos pela última vez. Sem os velhos móveis, os antigos bibelôs, quadros fora de moda e suas marcas de poeira na parede. Uma casa vazia já perde a expressão de vida, imagine uma que em poucas semanas estará reduzida a entulho. Lá se vai o concreto, o palpável. Ficam as lembranças, as histórias, as memórias em um formato novo ao qual nos adaptamos com o tempo, que transforma tudo




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