Algumas notícias que ouvimos ou situações que presenciamos nos deixam admirados tanto com a evolução quanto com o atraso da sociedade e dos costumes humanos. Confesso que as vezes me vejo inserida em contextos de filmes de época que retratam séculos passados. Mas não. Estamos no século 21.
Saber que ainda se morre por contaminação de mercúrio proveniente de garimpo, desnutrição em um país forte no agronegócio e dificuldade de acesso à saúde em uma nação que também se orgulha de ter um sistema público que serve de exemplo às demais, mais ricas e ditas desenvolvidas, é assustador.
Sair da bolha em que vivemos deveria ser um exercício constante que, pelo bem ou pelo mal, acaba nos amadurecendo e nos estimulando a fazer alguma coisa, a começar por buscar entender por que diferenças tão abismais são ainda tão presentes.
Costumo escutar as pessoas dizerem que se solidarizam com a dor dos menos favorecidos, mas que não sabem o que podem fazer concreta e sistematicamente. Digo que temos que começar nos convencendo de que se não dermos um passo não sairemos do lugar.
Começar reconhecendo a posição de privilégio em que se está inserido serve como uma chamada à responsabilidade. A maioria de nós foge do constrangimento de ver e sentir a dor alheia, e quando se aproxima se satisfaz com o sentimento de dó. Esse é mais fácil administrar, basta uma nota de R$ 5, uma quentinha ou uma roupa velha. Vida que segue.
Em pleno 2023, não imaginava ouvir de um amigo o diagnóstico da situação das costureiras que trabalham no Sul de Madagascar, para onde vou em março montar uma oficina. Não bastasse a água ser algo raro, caro e de difícil acesso, são comuns tempestades de areia. Com edificações precárias, ainda não será possível instalarmos máquinas de costura elétricas. Elas são incompatíveis com a possibilidade de centímetros de poeira as cobrirem em poucos minutos. Ok, então vamos, nesse primeiro momento, trabalhar com as máquinas movidas a força humana.
As costureiras estão habituadas ao modelo que é movido a mão, colocado sobre o chão, onde elas se sentam e fazem todo o trabalho. Vamos então dar um passo à frente ao colocar as máquinas sobre mesas e transferir a força para as pernas, através de pedais. Deixando as duas mãos livres para manusear e encaminhar o tecido garante-se uma administração mais eficaz do tempo de serviço e um acabamento pouco mais primoroso, longe do ideal, mas ainda assim melhor.
Enviei fotos das mesas e dos dispositivos necessários para essa transformação, acreditando que meu amigo que lá reside poderia providenciar, seja comprando-as ou contratando um marceneiro capaz de fazê-las. Para minha surpresa, ele me disse que nenhuma das costureiras locais, assim como as que trabalham na cidade mais próxima, jamais viram uma máquina guiada pelos pés. “É como se eu estivesse mostrando a foto de um unicórnio alado”, brincou.
Minha primeira reação foi rir do que me pareceu absurdo. A eles resta rirem de mim, de minha cegueira que me impede de enxergar o lado nu e cru da humanidade, que insiste em concentrar sua visão em seu próprio umbigo.