O sistema de fantasia da civilização moderna faliu. Quem gosta de fábulas sabe que medos costumam ocorrer em lugares distantes. Não deixou de ser costume, nos modelos mentais no Ocidente, falar de um local longínquo, onde o sonho se forma ou se esfarela.
O modelo de um mundo sem fim permitia expressar compaixão e pesar pelo infortúnio dos outros quando catástrofes e devastação estavam longe e não havia risco de ser atingido pessoalmente. Tudo era muito diferente quando o mundo não era tão perto e hiperconectado como agora, pois a velocidade das coisas não interferia na velocidade da vida.
Nesse mundo agora pequeno, onde a calamidade experimentada na China, em dezembro, chega, de avião ou navio, com capacidade letal, a mais de 150 países em dois meses e provoca pânico e solidão. O coronavírus que causou a epidemia da Sars em 2003 já era o sinal sobre as chances e os riscos de outras pandemias no século 21. Em parte, o fato de o Leste Asiático ter sido mais afetado o fez se preparar para essas situações de forma mais certeira. Isso não quer dizer que seja ideal o governo centralizador – com uma autoridade nacional política e sanitária única – ter se transformado no modelo mais capaz de enfrentar problemas emergenciais. Mas, certamente, a bagunça democrática está ajudando pouco.
Porque, quando o Ocidente perdeu a noção do que é o papel principal do Estado e abandonou o cidadão nas garras dos políticos fabricados pela internet e pela televisão, os governos viraram uma pandemia política. Um campo gravitacional impulsionado pelo desencanto do eleitor e apropriado por candidatos sem noção de autoridade, mas ganhadores de eleição. Agora estamos aí, no Ocidente, vendo personagens de televisão e Twitter governarem países com o coronavírus avançando. Artistas de eleição e redes sociais não são reais e não sabem o que fazer com a parada brusca e repentiana do rítmo econômico das coisas.
Na quinta-feira, os EUA, com 1 bilhão de habitantes a menos que a China, passaram a ser o país com o maior número de casos registrados no mundo. No mesmo dia, o equivalente nos EUA ao Ministério do Trabalho divulgou os dados mais recentes de desemprego no país. Sim, os EUA ainda têm um órgão ministerial que trata de trabalho. Criado há mais de 100 anos, é um dos 10 órgãos da Administração Pública americana mais antigos. O governo Trump nunca pensou em extingui-lo. Pelo contrário, mesmo o turbulento Trump percebeu logo que a legitimidade do seu próprio trabalho, assim como seu sucesso eleitoral, estão vinculados ao bom funcionamento do trabalho e da geração de renda na sociedade.
Eugene Scalia, atual chefe do Departamento do Trabalho e filho de um dos ex-juízes da Suprema Corte mais notáveis por seu conservadorismo, jogou a toalha. Enquanto divulgava os números do desemprego, delineava as ações que envolverão “centenas de bilhões de dólares de fundos sem precedentes para o tradicional seguro-desemprego e uma assistência para desemprego ‘pandêmico’. Mais o envio de US$ 1.200 para cada americano que ganha até US$ 75 mil por ano (US$ 150 mil para os casados) e mais US$ 500 extras por filho ou dependente. Nesses termos, mais de 85% das famílias americanas vão receber o cheque. Quem ganha até US$ 150 mil por ano, ou R$ 750 mil, receberá do governo para enfrentar o coronavírus.
Trump mudou? Não, a vida é que mudou, e Trump quer continuar vivo. Governante que não cair na real deve pedir para sair. Como afirmou a chanceler alemã, Angela Merkel, “isso é existencial, nós devemos nos concentrar voluntariamente em uma coisa: desligar atividades públicas o mais rápido possível. Nós somos uma democracia, mas não vivemos pela força”. O que ela disse que o presidente brasileiro não diz: como não temos capacidade de receber pacientes infectados que apresentem complicações respiratórias e não podemos interromper o tratamento dos que já estão internados por outras doenças e, nenhum presidente da República é Deus para decidir quem vai para o necrotério, fiquem em casa e evitem contaminar ou serem contaminados por uma doença que ainda não tem vacina para detê-la. Por isso, o confinamento, sem necessidade de decretação do estado de sítio, continua, e a ajuda do Estado, de forma não contributiva ou devolutiva, alcança cada vez mais pessoas, pois a pandemia atingiu a todos.
Os governos precisam ser sensatos para acionar todos os repertórios disponíveis de forma compreensível e cooperativa. Quando as provações que vivemos estão amparadas em algo de boa fé, é mais fácil enfrentar a insegurança. Cabe ao Estado socorrer as pessoas nas suas descrenças. E não agravá-las com seu próprio descrédito.