Chegamos à Semana Santa com mais de cem mil mortes decorrentes da COVID-19 mundo afora. Os Estados Unidos com o maior número de vítimas e Nova York, capital simbólica do mundo contemporâneo e sede das Nações Unidas, o centro da má onda que nos assola. Em seu A Peste, Albert Camus reflete sobre os estágios psicológicos e práticos que vão da negação da pandemia à dificuldade de contar os atingidos.
Se os EUA são o país com mais casos, a União Europeia é a região do mundo com maior incidência da COVID-19. Já são mais de 60 mil mortes na Europa Ocidental, como Itália, França, Espanha, Holanda e Bélgica.
Após um grande jogo de empurra, a UE chegou mais perto de um primeiro pacote significativo de 500 bilhões de euros. Acertado em encontro virtual do Eurogrupo, que reúne os ministros da economia dos 19 países da UE que têm o euro como moeda, o pacote está longe de ser suficiente, mas foi celebrado como um sinal de que talvez em 2020 não se repita a inação de 2008, durante crise financeira da época.
Ele se soma aos 750 bilhões de euros anunciados pelo Banco Central Europeu em março. Entre medidas fiscais e monetárias, a aposta é de que múltiplos instrumentos são necessários para atenuar os problemas causados pela brusca e sincronizada queda da atividade econômica. A grande linha de discussão é sobre o nível de clareza que os instrumentos adotados terão sobre o nexo entre arrecadação e gasto. Muitos líderes têm medo de apostar na clareza, mas a falta de clareza é o que alimenta confusões dos que apostam no enfraquecimento da união.
Para unificar a Alemanha no século 19, Otto von Bismarck se fiou precisamente em políticas de seguridade e bem-estar sociais até então inéditas. Para muitos, a real unificação da Europa estaria a uma crise distante (essa?), mas faltam líderes com o gênio de Bismarck e sobram governantes do twitter que confundem conservadorismo com falta de grandeza humana.
A integração europeia nunca conseguiu afastar de fato o espectro da crise financeira, cujos efeitos dominaram os movimentos políticos e sociais da década passada. A COVID-19 é um teste enorme para o euro e para a UE. Ou a Europa arruma uma nova grande visão para si, ou vai se despedaçar em frangalhos que desonrarão todo o esforço feito nas últimas décadas para trazer à região uma vida integrada e fundada nos seculares valores greco-romanos, com respeito a fé, a ciência e a democracia.
A União Europeia – e dentro dela seu núcleo duro, que é a Zona do Euro – é resultado de um conjunto de medidas visionárias que trouxeram paz e prosperidade a uma região onde historicamente imperava o conflito e a desconfiança generalizada.
Se nos anos seguintes a 2008 ficou claro que união monetária sem união fiscal poderia vir a ser o novo ovo da serpente na história europeia, o contexto de perdas e gastos extraordinários em uma pandemia testará isso numa forma que vai muito além.
É evidente que a paralisação econômica obriga à realocação de recursos de uma forma ao mesmo tempo mais produtiva e sustentável. Todavia, tanto liberais quanto conservadores sabem que razões de Estado precisam estar focadas em medidas de proteção do tecido socioeconômico enquanto se confronta a pandemia. Depois, quando for possível reiniciar o funcionamento econômico, fazê-lo a todo vapor e com o apoio do tesouro público. Quem está inventando desculpa agora para desproteger o cidadão é porque na verdade nunca se interessou muito por um cidadão em desespero. O FMI prevê que 170 países tenham retração econômica em 2020 e enfatiza a necessidade de “proteção às pessoas e firmas afetadas, com medidas fiscais e financeiras amplas, ágeis e direcionadas”.
O euro foi criado com a melhor das intenções, mas nasceu com um vício de origem. Sabe-se desde o início que a única forma de se reequilibrar a economia da Europa seria promovendo uma união fiscal que garantisse recursos para países em épocas de vacas magras e impedisse que gastassem além da conta nos tempos de euforia. Posicionados na metade do caminho, ficam à mercê de instabilidade, porque cada país nem tem todas as ferramentas que um país comum tem a seu dispor para lidar com crises dessa natureza, nem têm uma estrutura fiscal superior (plurinacional nesse caso) para garantir certos padrões mínimos.
O Brasil, unido, teria todos os instrumentos para atravessar a crise global em posição privilegiada. Sairia dessa com capacidade de melhorar a vida do povo e contribuiria para um melhor equilíbrio econômico. Bastaria ter harmonia de iniciativas oficiais e o governo praticar a mínima ideia moral de defender toda e qualquer vida humana. Boa Páscoa para todos.
* Paulo Delgado, sociólogo
(Com Henrique Delgado)