Jornal Estado de Minas

A incapacidade de lidar com uma pandemia pode condenar um governante

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A praga de Justiniano ocorreu há cerca de 1.500 anos. É um dos exemplos mais antigos de como doenças se espalham através de rotas comerciais de longa distância. A incapacidade de controlar a difusão da praga fez com que o império bizantino diminuísse ano após ano a partir da primeira onda pandêmica. Em 762, restou só uma fração da extensão de 541. À época, as pessoas sabiam pouco das medidas sanitárias necessárias para evitar que a doença ficasse vindo em ciclos mortais por quase 200 anos. O governante ganhou o nome da praga com a qual não soube lidar.


 
Para além da acumulação de riquezas, o avanço econômico depende demais da especialização que só pode ocorrer mediante as trocas. Para muito além do avanço econômico, as trocas são a essência da vida. O ser humano é um animal que migra, se estabelece, se especializa e troca. Então, migra novamente e renova o ciclo. Onde dá certo, comunidades prosperam. As sociedades que melhor se organizam para potencializar troca (comércio seguro e saudável), especialização (educação e produção), estabelecimento (bem-estar), mitigação de riscos (seguro e bem-estar social) e migração (acolhida e atratividade) são as que dominam o avanço do  mundo. São as que conseguem sustentar dimensões imperiais e fomentar civilizações que façam bem ao mundo.
 
Pelas rotas marítimas, doenças tendem a chegar primeiro aos portos. Pelas aéreas, nos aeroportos. A pé ou transportado, nas fronteiras terrestres. O contágio se espalha primordialmente através das rotas comerciais e coloca pressão sobre regulações sanitárias.
 
Em meio à forte reação contra a globalização pela qual passa o mundo, é crescente o discurso que liga o aumento do fluxo de pessoas e commodities (principalmente as orgânicas) à difusão de doenças e pandemias. As barreiras não tarifárias, que já haviam se tornado impedimentos maiores ao comércio global do que as tarifárias, vão recrudescer. Os países que conseguirem usar ciência e protocolo para garantir que seu comércio é seguro e saudável sofrerão menos e terão inclusive mais oportunidades. Não há mais possibilidade de empurrar com a barriga problemas básicos de saneamento, gestão de resíduos sólidos e outras questões sanitárias que afetam as pessoas e o meio ambiente. Nem dá para chamar de governo qualquer coisa irresponsável.


 
No Japão, que já foi um país muito pobre, hoje em dia vive os problemas do coronavírus com uma perspectiva de melhorar vários aspectos estruturais e comportamentais que limitavam o bem-estar e o avanço socioeconômico do país. A transformação digital está realocando recursos que estavam mal-empregados e causando a estagnação em meio à riqueza. Horas intermináveis para ir e voltar do trabalho. 
 
Ter que optar entre morar mal, mas perto do emprego, ou bem, mas longe dele. Esses e mais tantos outros problemas de congestionamento que a transformação digital pode melhorar mais do que transporte público, quando ele já existe com grande eficiência e escala, como é o caso das cidades japonesas.
 
As empresas precisam aprender a confiar na capacidade de seus funcionários se ajustarem à tecnologia. Parcerias público-privadas precisam ser formadas para facilitar a formação de estruturas adequadas para teletrabalho. 


 
A própria estrutura de funcionamento da internet precisa alcançar todas as regiões e residências, pois em nossa era o longe ficou perto.
 
Não é possível que as avenidas, pontes, estradas e janelas digitais que conectam e conectarão cada vez mais brasileiros e negócios brasileiros não estejam sob controle final do Estado, com participação intermediária da iniciativa privada do país. Não dá para seguir sendo tudo estrangeiro e aberto à manipulação de fora, a começar pelas redes sociais. 
 
Abrir mão dessa soberania, no mundo que está aí, é abrir mão de entender com nossa cultura os entendimentos e desentendimentos humanos.  É irracional para todos, empresários, trabalhadores e clientes.
 
A cisão entre o indivíduo on-line e a pessoa real vai acabando no processo em que até celebrações religiosas passam a ocorrer a distância. O desafio é planejar e executar o ajuste para a nova conjuntura global. Famílias, empresas, demais organizações e poder público fazem bem ao se guiar em busca do bem comum.
 
Em termos bíblicos é um conto de dois faraós possíveis. Um vê em sonho a aproximação de uma praga, se aconselha corretamente e prepara seu país para atravessar com galhardia e solidariedade um tempo de vacas magras. Já o outro vê a praga diante de seus olhos, mas com o coração e o pensamento endurecidos é incapaz de fazer a coisa certa para poupar o país do prolongamento da desgraça. (Com Henrique Delgado)