Em grandes empresas e instituições de saúde e ensino ao redor do mundo ficou comum questionar por que membros dessas comunidades não realizaram testes rotineiros de COVID. Mesmo vacinado, para se ter acesso a certos ambientes somente concordando em testar a possível contaminação. Isso gera situações esdrúxulas, como cobrar testes de pessoas que estão de férias – logo, não estão nem frequentando os ambientes nem mesmo muitas vezes estão na mesma cidade – ou viajando a trabalho, sob ameaça de punição disciplinar.
Varia de empresa para empresa se a consulta vem do RH ou de um comitê formado para gerir a COVID. São protocolos a cargo das firmas e outras organizações e se relacionam com diretivas do Estado em níveis variados a depender do país. No todo, são chateações que salvam vidas.
Há muita discussão sobre um eventual recrudescimento autoritário, mas mesmo que a tendência esteja aí a pandemia não é causa. Como o autoritarismo se manifesta tanto em gente que exige proteção quanto em gente que se ofende com proteção, o vírus certamente não é ideológico – ele apenas cutuca e aflora os instintos característicos das pessoas. E mata – felizmente cada vez menos por conta da vacinação. As experiências mundiais mostram que a vacina é o melhor remédio. Por isso, de imediato, países que mais vacinam têm menos mortes.
Todavia, outras estratégias auxiliam. Além do velho bom senso, a nova tecnologia digital – quando usada com bom senso – está ajudando. Muitas empresas nos EUA, por exemplo, demandam que pessoas ligadas àquela comunidade monitorem sintomas, testes e vacinas de COVID por aplicativos. Na China, esse monitoramento através de aplicativos é realizado de forma ubíqua. Para entrar em prédios, transportes públicos, parques, etc. Se o aplicativo der um sinal verde você pode ir em frente; se der vermelho é porque algo indica que deve se tratar. O país funciona, mantendo a COVID sob controle, desse jeito.
Muitas estratégias baseadas em coleta de dados vêm sendo usadas para combater a COVID. A empresa Grandata, da Califórnia, oferece, em parceria com programas da ONU, um monitoramento do movimento das pessoas na América Latina fora de suas casas. O monitoramento é feito a partir do celular dos usuários. Em termos de dados personalizados para COVID, na região a prática de uso de tais aplicativos tem sido voluntária quando ocorre – o que é o ideal. Na região, a Argentina, contudo, exigiu o download de um aplicativo para quem visitasse o país antes da vacinação – algo que prenuncia a estipulação de comprovação de vacinação para viagens internacionais daqui pra frente.
A grande questão da pandemia de COVID é justamente o fator inter-regional. Atualmente, o mundo, mesmo em lockdown, é todo conectado em relações intersociais. Não é possível resolver a questão em um país sem resolvê-la em todos. O colunista do Financial Times Martin Wolf escreveu dias atrás – com razão – que o ser humano é um “primata tribal que construiu um mundo que seu tribalismo não consegue gerir”. Ele se equivocou, contanto, ao colocar o grosso da culpa no G-20, de quem, segundo ele, se esperava mais. Coitado do G-20 – um grupo ad hoc que é a melhor ideia de governança global dos últimos anos, mas que não para de ser boicotado e cujo poder real é se reunir. Quem tem culpa são os países do G-20, a começar dos mais poderosos e especialmente seus líderes. Culpa inclusive de não dar poder real ao G-20 – e à ONU – para resolver problemas da nossa bendita interdependência, como, por exemplo, pandemias.
Exemplo da mentalidade de boicote ao G-20 e a princípios de mera civilidade, Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations – o mais prestigioso conselho multiprofissional dedicado a debater a política externa estadunidense – que publica a Foreign Affairs desde 1921 (publicação que começou em 1910, aliás, com o nome de Jornal do Desenvolvimento Racial) veio com uma dessas ideias tribais recentemente. Segundo ele, nem ONU, nem G-20, nem G-7 – bom mesmo seria o velho Concerto da Europa do século 19 remodelado para o século 21.
Mas a Foreign Affairs publica excelentes análises também. Na sua edição atual traz um interessante artigo escrito por um punhado de epidemiologistas com experiência em pesquisa e política pública, que basicamente argumentam que o Sars-CoV-2 veio para ficar. Por isso protocolos seguirão sendo importantes por algum tempo – e mais vacinas. Os autores apontam que é necessário refazer o sistema internacional para lidar com pandemias. Na situação atual, as variantes vão se espalhar porque não basta que alguns países tenham até mais vacinas do que população – tem que vacinar quem não tem vacina também.
A COVID pode servir para acelerar a saída de um mundo sem bom senso.