Na campanha para primeiro-ministro, Boris Johnson precisou prometer que não privatizaria o Serviço Nacional de Saúde britânico, o icônico NHS – National Health Service. Criado em 1946 como um dos passos para o Reino Unido atingir prosperidade e bem-estar social após a Segunda Guerra Mundial, o NHS inspirou vários serviços de saúde mundo afora. Inclusive o SUS brasileiro. Entretanto, o NHS não é livre de críticas e sempre ameaçado por variadas formas de privatização. Elas só não prosperam porque não passa de 10% o percentual de britânicos favoráveis à gestão privada do principal provedor de saúde nacional.
Ainda que parte do partido de Johnson abrace a ideia de passar o filão para a iniciativa privada há anos, nas campanhas fica claro que a maioria da população sabe que privatização não é a única solução para problemas encontrados em serviços públicos. Quando passou a liderar o Partido Conservador, em 2019, Johnson flertou com a possibilidade de transformar a privatização em bandeira, até ficar claro que isso afundaria sua campanha. O NHS não apenas é um serviço universal, mas virtualmente toda a sociedade o usa. Além disso, a maioria da população apoia os princípios do NHS – de ser público, financiado por impostos, e gratuito na ponta.
Se o NHS é referido como um orgulho nacional, a satisfação com o serviço tende a ser mais baixa. Ainda que a satisfação fique acima de 50%, há uma crescente inquietação com relação a uma percepção de que o serviço esteja se deteriorando. No meio da semana, o camaleônico Johnson enfrentou uma revolta de parte de seu partido para aprovar no Parlamento um aumento de impostos para financiar o NHS.
O Reino Unido anda de mãos dadas com a média mundial e gasta ao todo 10% do seu PIB com saúde. Desse total, 80% são gastos públicos. É considerado um serviço muito eficiente que tem retornos muita acima da média mundial em termos de expectativa de vida e outros indicadores de saúde. Existe um sistema rígido de controle de acesso feito por generalistas e as filas podem mesmo demorar para casos sem emergência, mas funcionar funciona. Isso apesar de não estar livre de defeitos e do fato de que qualquer mancada em gestão de saúde gera um trauma forte.
A pressão social para aumentar os recursos do NHS se tornou aguda em meio à pandemia de COVID-19. A experiência pessoal de Johnson de ter que passar por uma CTI do NHS com COVID-19 talvez tenha contribuído para sua decisão de divergir de figuras influentes de seu partido e trabalhar pelo aumento dos recursos do serviço de saúde. Mas o principal motivo é o que ele mesmo disse: “São decisões que o país queria ver”. Ainda que haja controvérsias sobre os efeitos distributivos imediatos do aumento de imposto – que sempre vai recair sobre o assalariado – aumentar recursos do NHS é condizente com o sentimento do país.
Serve também para diluir um certo princípio de escândalo, já que várias ações para conter a pandemia foram contratadas em regime de urgência pelo governo junto a empresas privadas e não endereçadas ao NHS. Como o controle do coronavírus não é dos melhores no Reino Unido – que segue sendo o país europeu com maior número de óbitos por COVID-19 –, ninguém quer ser acusado de ter colocado o dinheiro no lugar errado. Principalmente se é em desconhecidas novidades privadas num país em que 80% do gasto com saúde vem do Estado. Nunca teve tanta gente de fora da área querendo prestar serviço de saúde.
Aliás, o setor privado não precisa dessas aventuras em meio à pandemia. Em vários países ocorre naturalmente um aumento expressivo de busca por planos e atendimentos médicos privados. Com o NHS tomado pela batalha contra a COVID-19, muitos pacientes com urgência e recurso têm ido em números recordes tratar no serviço privado. Pode também não ser perfeito, mas aí, sim, um serviço complementa o outro sem precisar forçar a barra em momento de comoção social.
Como também complementam um ao outro os serviços de cuidadores. Eles em geral são fornecidos por empresas privadas, mas entram como uma parte cada vez mais relevante do NHS para que uma população cada vez mais idosa não passe aperto no fim da vida. Assim, uma outra parte da reforma em andamento estipula um acompanhamento do NHS para que serviços de cuidadores acima de um certo valor – e a depender da renda – sejam cobertos pelo Estado. Essa foi uma das promessas centrais de campanha de Johnson: que as pessoas não precisariam vender suas casas para pagar por cuidados que necessitem ao envelhecer. Na reforma, o NHS arcará com valores que passem de 86 mil libras ao longo da vida.
Conclusão: menos infeliz o país que tem um SUS.
Com Henrique Delgado