Rotelli foi o mais importante colaborador de Franco Basaglia, autor da luminosa e inspiradora lei de desospitalização e ressocialização de doentes mentais. A Lei Basaglia redirecionou o modelo de atenção aos portadores de sofrimento psíquico, mudança iniciada de forma parcial por reformistas britânicos. Mas tudo mudou para valer quando Basaglia dirigiu o manicômio de Gorizia, cidade da região de Veneza, considerado o marco inicial da psiquiatria social.
Rotelli, italiano nascido em Cremona, comunidade da região da Lombardia, dedicou sua vida a reparar pessoas quebradas pela máquina impiedosa que preserva e fabrica de forma maltratada seres humanos destruídos pelo sofrimento mental e feridos pelo preconceito.
Rotelli é da estirpe e da galeria dos grandes nomes da psiquiatria humanista mundial, seguidor de David Cooper, Ronald Lang, Irving Gofman, Michel Foucault, Nise da Silveira, Felix Guattari e parceiro inseparável de Franco Basaglia. Houve uma época em que as pessoas riam sem interesse, o humor não era insulto, havia a possibilidade de uma vida psíquica autogerida. O louco fazia parte da paisagem e a compreensão humana era o principal protetor dos que vivem em desvantagem.
Quando as pessoas perderam o direito à vida livre nas cidades; aumentou a violência; o trabalho passou a ser sinônimo de penosidade; a identidade entrou em deriva levando as diferenças humanas para os tribunais; as regras da economia passaram a não valer nada, somente servir para empobrecer a maioria das pessoas; a escola perdeu o rumo, se tornou obsoleta ou falsamente moderna; a religião virou negócio; a política ficou ridícula; a tecnologia ocupou o lugar do coração humano....a doença mental aumentou vertiginosamente e o sofrimento psicológico passou a predominar.
Imediatamente, para competir com os hospícios, surgiram as técnicas de encarceramento químico, comunidades terapêuticas oferecendo tratamento moralista e entupir os incômodos sedativos para adoecer o inadaptado ao mundo adoecedor. Pessoas frágeis, tímidas, traumatizadas, nem sempre aguentam as decepções e a perda do sentido pedagógico e terapêutico de uma vida pessoal e comunitária que não seja impulsionada pela compreensão, felicidade e alegria.
A medicina da alma incomoda a psiquiatria hospitalar, pouco sensível à importância da alta do paciente, mesmo quando sua condição clínica é determinada por seu destino. O aprisionamento hospitalar, em sua versão mais doentia, o manicômio, não deixa o sofredor mental libertar-se de suas correntes pulsionais utilizando sua fantasia, seus sonhos, suas alucinações. Rotelli, como diretor por mais de 15 anos do Hospital de Trieste, espalhou sua visão humanista de tratamento pelo mundo e criou serviços alternativos à internação.
Não aceitava reduzir o ser humano à soma de seus sintomas cerebrais, nem usar jargão e injúria contra quem precisa de atenção, acolhimento e cuidado. Um desafio ao mundo frio da estupidez vestida de ciência, a pretensa racionalidade da farmacologia e do diagnóstico clínico devorador do espírito, onde a má medicina se imagina o remédio da doença que ajudou a agravar.
A boa psiquiatria, psicologia ou psicanálise, precisa de grandeza para não duvidar que o inconsciente de um profissional também está atuando quando pensa saber mais do que o inconsciente daquele que o procura. Na medicina, quem se faz de senhor, quer que o outro se faça de servo.
Um saber clínico necessário ao sucesso da reforma psiquiátrica tem que se dedicar a cultivar uma psicoterapia de caráter clínico-social dirigida à autoestima do usuário do serviço, a deixá-lo flanar, assistido ou por seus próprios meios, sem a contenção arrogante dos serviços fechados.
O cientificismo médico-hospital-farmácia e sua pretensão de ultra especialização sem a escuta do paciente é fraude, pois quem trata de seres humanos não pode ser um mero perseguidor de sintomas. E aquele que sabe diagnosticar nada ajuda se não tiver simpatia e bondade pelo que sofre.
Conviver com Franco Rotelli foi uma das melhores coisas da minha vida. Suas ideias inspiraram a lei brasileira da reforma psiquiátrica que tive a honra de ser o autor. Grazie Franco! Por todos.