É inacreditável. Nada na América do Sul dá certo. Pródiga em luta, inimigo, deslealdades e nenhum sucesso, jamais conheceu a opulência. Um subcontinente do fim do mundo, menor população, concentrada riqueza, tendência para piorar as coisas, só gosta do povo que gosta de governo.
Eis que dois ditadores, há 50 anos, decidem fazer uma usina binacional, usando águas de um mesmo rio, interferem na vida de milhares de pessoas, enterram o esplendor das sete quedas para consagrar um acordo inédito. De um lado, usar a energia produzida mais do que o suficiente, e de outro pagar mais por energia insuficiente. Maturidade. Não. As luzes mais fortes da determinação em política são autoritárias e incompatíveis com a noção suave de democracia que se ensina nas escolas. Itaipu é um escritório milionário para governos acomodarem sombras.
Do ponto de vista da geopolítica foi acordo de gigante com formiga. O Brasil, sem inimigo na fronteira, partilha com seu vizinho o poder. Na sala de operações, de turno em turno, sobre duas bandeiras, revezam-se as duas nações.
Itaipu completou 50 anos e as bases financeiras entre Brasil e Paraguai podem ser revistas. O Paraguai quer vender sua energia mais cara, inclusive no mercado livre. Mas o que vai prevalecer nas renegociações da binacional é o exemplo grandioso que junta engenharia civil e diplomacia.
Com suas toneladas de concreto, ferro e aço, o surpreendente é o respeito a um contrato de integração entre dois países latino-americanos que dura 50 anos. Se isto é possível em ditaduras, porque a democracia pode menos. A Usina tem caráter filantrópico para o Paraguai, considerando o que o Brasil pagou de valor monetário por ela e o que o Paraguai recebeu como fonte de receita desde o longínquo ano de 1973. É difícil imaginar dificuldades intransponíveis na renegociação. As cláusulas do Anexo C – que dão aos países o direito de vender 50% da energia - são um problema para o Paraguai: para quem ele vai vender metade da energia de Itaipu com garantia de preço e estabilidade de contrato? O melhor dos mundos continua o rio Paraná e o sócio samaritano chamado Brasil, que sempre deu mais que recebeu.
A revisão dos termos financeiros da gestão de Itaipu pode bem interferir no mercado de energia como um todo, mas certamente não vai abalar a confiança de ferro que construiu a Usina. As disparidades não atingem igualmente os dois lados. Para o Brasil interfere pouco, pois Itaipu não supre 10% das necessidades nossas. Para o Paraguai, que não consome tudo o que tem direito, é que a renegociação é uma questão patriótica, como se expressam nossos calientes vizinhos.
O dado novo é que com a ascensão de novas energias, como a solar e a eólica, o papel estratégico de Itaipu não será o mesmo. A hidreletricidade é meio mística, velha, e vive o fim de sua ambição. A inteligência brasileira é boa, mas a atual geração é preguiçosa e perdeu o interesse pela dificuldade. A luz da água parece o protótipo da energia limpa e renovável, mesmo que mude o curso do rio, tire a grandeza de cataratas e interfira na flora, fauna e vida humana. Com a transição energética, Itaipu e suas congêneres no mundo vão se entregar a marqueteiros. Gastar fortunas em publicidade para vender a ideia de que são um seguro contra as disparidades climáticas, falta de vento e sol, escassez de biomassa. É o eterno drama do ventilador lutando contra a fama do ar condicionado.
Enfim, os projetos como o de Itaipu não são mais viáveis. No mínimo por questões econômicas e de contexto socioambiental. No fundo, esses exageros são coisa de ditadores e seu gigantismo impertinente.
A novidade nestes 50 anos é não ter havido novidade. Somos água parada. O partido Colorado não sai do poder e hoje vai de Santiago Peña. Lula voltou ao poder no Brasil. Dificilmente a questão política deve interferir na renegociação de Itaipu. Mesmo que Peña veja a negociação como “chave de desenvolvimento” para o país, ele esbarra numa história sólida.
Itaipu é uma exemplar construção de engenharia que obrigou a política, justiça, diplomacia e economia de dois vizinhos a aceitar uma área de soberania partilhada, na fronteira entre seus dois países. A ironia é que democratas não fariam melhor.
Lembrar do fato é essencial porque o amargo prazer da política é constatar que o vitorioso gosta mais de adversário que aliado. Na América Latina é regra: quem primeiro entra no avião do eleito é quem votou no adversário. Se Médici e Strossner se entenderam há 50 anos, é difícil imaginar que Lula e Peña possam parar a turbina. A menos que queiram confirmar o ditado de que quem quer cair merece ser empurrado.