(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas COLUNA

Um mundo sem Dom Quixote

O mais espetacular livro já escrito em língua espanhola continua necessário para entender a história de Dom Quixote de La Mancha


02/07/2023 04:00 - atualizado 02/07/2023 09:53
771

Dom Quixote
(foto: Wikimedia Commons)

Um cinquentão erudito e magro como seu cavalo, acompanhado de um camponês simples e gordo, em cima de um burro, vestido com uma roupa esquisita, segura uma lança e sai pelo país em busca de um desígnio incompreensível de reparar a injustiça e desfazer agravos, proteger os fracos, respeitar as mulheres, oferecer um horizonte às crianças. 418 anos depois de publicado, o mais espetacular livro já escrito em língua espanhola, enlouquecido sonho de seu criador Miguel de Cervantes, continua necessário entender a história de Dom Quixote de La Mancha.

O mundo histórico em que viveram, o autor e o personagem, pode até ter desaparecido em parte, mas o espírito de humanidade mais elevada que relata, pode bem ainda ajudar a melhorar as pessoas a enfrentarem a má espiritualidade em que vivem as nações.

A baixa qualidade das experiências nacionais nos quatro continentes não é motivo de orgulho para os Estados, nem para seus governos, diante da maneira como enfrentam as dificuldades econômicas, a defesa dos valores humanos e democráticos. Os países não observam as mesmas regras e normas de conduta, abraçam sistemas econômicos egoístas e excludentes, ambições territoriais de líderes arcaicos e permanecem em seu interior a veemente luta interna pelo poder. Sem vocação para a eternidade, perdidos no tempo e no espaço, não conseguem abraçar as causas de preservação da natureza e de elevação do respeito aos direitos humanos.

Falta clarividência e instrumentos capazes de fazer mudança que sejam capazes de combater a opressão da necessidade e coibir a violência e o desamparo. A espetacular ausência das autoridades e das instituições nos bairros pobres e desassistidos só é agravada quando aparecem, e ao invés de resolver, pioram as coisas pelo desaforo com que podem e costumam cometer arbitrariedades. Moscou, Paris, Istambul, Brasília, Beijing, Washington, Nova Delhi ou Cartum, não há capital de país onde a barbaridade vil não esteja presente vizinha dos palácios de governo.

Nenhum governo conseguirá perceber o que realmente importa, nem entenderá as circunstâncias humildes, inocentes, sem ênfase, em que vivem a maioria das pessoas. Não há dentro das nações um entendimento sobre o que seria e como seria alcançada a justiça para todos. Os sonhos e os ideais declinam consumidos por si mesmos diante de uma realidade que não alcançou o máximo das suas possibilidades virtuosas e não consegue mais sustentar o otimismo frente ao poder que regula a vida em todos os lugares.

A liberdade, ensina o Quixote, é individual e necessita de um mínimo de prosperidade para ser verdadeira. Liberdade é felicidade. A liberdade, continua, é um dos mais preciosos dons que os céus deram aos homens. Sem desfrutar de liberdade qualquer obrigação, benefício ou favor recebidos são ataduras que não deixam o ânimo campear livre. Venturoso é aquele a quem o céu deu um pedaço de pão sem que lhe fique obrigação de o agradecer a outro que o próprio céu!

Os eventos que tocam o mundo atual continuam configurando a mesma estratégia política de sempre. O país que não assume uma atitude amistosa com o outro, qualquer que seja a influência moral de sua política, força o outro a procurar aliados em outra parte. A balança do poder das nações nunca admitiu que argumentos fundados em princípios éticos sirvam para ampliar a liberdade de manobra e atrapalhem os interesses dos governantes.

A violência estatal em guerras visando a mera acumulação de poder interno e a não estatal dentro da sociedade abandonada aumenta a cada dia. A ambivalência de falar em compromisso com a liberdade buscando domínio sobre o outro sustenta discursos políticos que separam poder e princípios. Boa vontade e barganha é ilusão de que fazer as coisas pela metade é o mesmo que fazer o necessário. Sem falar do domínio digital que assume cada vez mais o lugar do domínio humano.

Tocar a vida, roer o osso, ser impertinente. Quando os que tiram proveito da injustiça se destacam, ao contrário dos que nada ganham sendo justos, é preferível o delírio dos lunáticos do que confiar na existência de alguma ordem mundial. Não se trata de reatualizar o passado, nem de desrealizar a realidade. É preciso sonhar com a harmonia internacional para espantar o pesadelo da desordem global.

NOTÁVEL FIGURA HUMANA: Morreu, no Rio de Janeiro, o médico e sanitarista Domingos Sávio do Nascimento Alves. Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde de 1991 a 1996, foi um pioneiro e Quixote da luta pelos direitos e a proteção aos doentes mentais brasileiros. Mineiro de Piedade do Rio Grande entendia o que era, verdadeiramente, uma ordem mundial.

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)