A Câmara dos Deputados aprovou nesta semana uma Medida Provisória para deflagrar a privatização do sistema elétrico brasileiro, que se acha debaixo do CNPJ da Eletrobras. Será venda fatiada, porque precedida por cisão de Itaipu Binacional e das usinas termonucleares. O que está em jogo é a perda do controle, pela União, que é hoje exercido em conjunto com o BNDES. Ao colocar novas ações à venda, não subscritas pelo Tesouro Nacional nem pelo BNDES, tal 'capitalização' da Eletrobras por novos acionistas privados formará uma nova maioria de votos no Conselho de Administração da empresa.
E quanto vale esse novo controle? O mercado não sabe direito. Depende do valor futuro dos ativos que ficarão na nova Eletrobras (sem Itaipu e Angra). Depende das novas regras de cobrança de cada megawatt gerado, se mercado regulado ou livre. Depende, ainda, do crescimento da própria economia, bem como da demanda futura por energia elétrica, que promete ser a grande alternativa aos combustíveis fósseis. Por quantos bilhões você pensaria vender esse ativo?
Nesse mar de incertezas, um Congresso atolado em mazelas políticas, CPIs e disputas com o Supremo, resolve correr para 'privatizar' o conglomerado elétrico mais relevante do país.
Privatizar para quem? Os prováveis compradores serão estatais ou fundos de pensão públicos de outros países, tendo China à frente de todos. Não deixa de ser tragicômico que um governo tão sensível à atuação do governo chinês no episódio da COVID e das vacinas seja o mesmo que forma maioria no Congresso para viabilizar um leilão cujo resultado provável será o domínio de empresas e fundos estrangeiros sobre nosso futuro energético. Mal explicado e incompatível com o perfil do presidente e de seus aliados patriotas.
Fecha a cortina. Não obstante quem venha a dar as cartas na Eletrobras, certo é que praticamente nenhum deputado votou com mínimo conhecimento de causa. Agora, o projeto segue para o Senado, presidido por uma figura de estatura intelectual. Será que Rodrigo Pacheco sabe o que ele e seus colegas estarão autorizando vender? Há duas questões essenciais nessa 'privatização', além do problema já apontado da perda de comando sobre o processo energético do país. Um deles é o da futura 'precificação' das contas de energia. Em português, os consumidores pagarão a conta dos futuros investimentos. Como sempre pagaram, aliás, já que toda a geração energética estatal do Brasil decorre de tributos, empréstimos compulsórios e 'adicionais' invisíveis nas contas de energia, por décadas a fio.
Portanto, foi poupança forçada em cima do bolso de nossos pais, avós e bisavós, donos da Eletrobras, que já morreram, nos deixando este pecúlio energético que será alienado por decisão notívaga de representantes desatentos. Antes de perpetrar a entrega, é essencial que o Senado estude o IMPACTO de sua decisão sobre os bolsos dos brasileiros, atuais e futuros consumidores, e também que se reflita sobre o VALOR PERDIDO se tal venda resultar, um ou dois anos à frente, numa surpreendente valorização do ativo num múltiplo superior a cinco, talvez dez vezes, o valor apurado nesta venda de fim de feira do governo.
Qual regra autoriza o Congresso a abdicar dos valores embutidos nessa transação bilionária?
Há, por exemplo, valores ainda a amortizar sobre o investimento nas usinas de geração e nas linhas de transmissão. Tais valores foram calculados em função de outra MP, de número 579, do governo Dilma. Sempre as apressadas MPs, deliberando mal sobre bilhões e trilhões.
Nesse caso, a 579 incorreu em falha clamorosa de avaliação dos valores a amortizar. Avaliou para muito menos. Enquanto presidente do BNDES, tentei alertar o TCU sobre a polêmica, mas sem sucesso aparente. No Brasil, não gostamos de prevenir. Preferimos debater sobre as vestes dos mortos, como no patético espetáculo da CPI da COVID.
Teremos, no futuro, outra CPI para apurar a venda ruinosa da Eletrobras. Nesse futuro, parlamentares patriotas e televisivos deitarão falação e muitos lembrarão, tardiamente, de chamar essa privatização de 'privataria', como já se alcunhou o processo de venda de estatais no passado.
Só que, privatização ou privataria, o tempo certo de refletir antes de deliberar já terá passado. Vários atores já estarão mortos. O Brasil terá continuado pobre e desatento. As tarifas nas contas de luz já terão subido. O valor dos ativos alienados já será muito mais alto e inacessível ao investimento por brasileiros comuns, como os segurados do INSS. Sim, esses mesmos segurados do INSS que, um dia, já foram 'donos' da velha e boa Eletrobras. Triste é o país cujo povo trabalha para construir um patrimônio cujo valor de alienação não reflete, minimamente, nem o suor da camisa de quem realizou a grande obra nem uma previsão razoável do futuro brilhante que teríamos pela capitalização coletiva desse patrimônio para seus verdadeiros donos.
(*) Paulo Rabello foi presidente do BNDES (2017-18). Contribui quinzenalmente aos sábados.
O termo 'privataria' foi empregado no título do livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr. “A Privataria Tucana”