Está no texto sagrado Êxodo 20:5: “...sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam”. Esta é, sem dúvida, uma das passagens intrigantes da Bíblia. Moisés não prevê que os filhos tenham que pagar pela maldade dos pais. Mas constata uma realidade dolorosa, a de que nem Deus dá conta de impedir que a iniquidade de uns arrase o futuro de seus próximos. A “impotência divina” contra a iniquidade – aquele tipo de erro portentoso, capaz de causar grande mal – nos alerta sobre o alto preço das más escolhas.
O ambiente brasileiro nos invoca a atualidade do alerta mosaico. Vivemos um tempo propenso à adoração de bezerros de ouro. Nossa geração cava um buraco de tamanho tal que poderá comprometer o destino das próximas, nossos filhos e netos “até a quarta geração”. Nossos bezerros de ouro são, hoje, as crenças baseadas em falsas soluções e caminhos sem saída, clicados em redes sociais por líderes políticos inescrupulosos, dispostos a qualquer maldade para se perpetuarem no usufruto do poder. E não são poucos.
Colecionamos iniquidades, seja por ignorância dos líderes, seja por pura perversidade deles. A pandemia nos traz uma lição amarga: bilhões e bilhões desperdiçados no falso combate ao vírus e sua disseminação. Não só por superfaturamentos generalizados. Também por desvios de verbas de suas finalidades específicas. Os leitos de enfermaria e de UTI do país tiveram aumento desprezível, frente aos bilhões supostamente gastos no SUS. O chamado “orçamento de guerra”, aprovado em 2020, pelo Congresso, sem a mínima previsão de controle de gastos, gerou uma pandemia de dinheiros jogados fora, inclusive nos auxílios emergenciais concedidos a rodo, até para quem de nada precisava.
Mais grave tem sido a repercussão da gastança de ontem sobre a curva da inflação de hoje. A explosão do gasto público, não compensada a tempo pelo inerte Banco Central, gerou uma inflação que retorna ao pior período de Dilma Rousseff. As tardias providências de aumento de juros para frear a desarrumação da economia mostram como ficará caro para a sociedade brasileira a conta da má regência das variáveis econômicas. O governo Bolsonaro começou incontrastável, com a faca e o queijo na mão. Mas foi escolhendo caminhos sem saída e, assim, perdeu seus melhores colaboradores.
O guia da caminhada revelou-se um cego vagando pelo vasto deserto. A estéril tentativa de enviar pedaços de reforma tributária para exame no Congresso - como ainda no recente episódio da suposta “reforma” do Imposto de Renda, texto já retalhado e destroçado pelo relator na Câmara – revela o grau de absoluto despreparo de uma equipe conduzida ao poder pelo bezerro de ouro da mensagem bolsonarista, ao prometer nos livrar da “sanha comunista” e conduzir o país, finalmente, ao oásis liberal. Quanta decepção.
O desastre da travessia desse deserto de inteligências, usando a bússola quebrada de um personagem caricato de série Netflix, nos empurrou, literalmente, ao impasse da última gota d’água no cantil. Ninguém, neste bíblico governo, conseguiu agir para prever e conter o dano do esgotamento dos reservatórios hídricos. Chegamos, neste agosto, a um nível ínfimo de reserva de água para consumo humano, industrial e para gerar energia. As consequências da iniquidade dos nossos gestores em Brasília serão de proporções bíblicas. A inflação ganhará mais alguns pontos, os juros correndo atrás, enquanto a recuperação da economia e a geração de novos empregos definharão.
A iníqua gestão do país, agravada pela criminosa manipulação da pandemia, agora até com a ameaça de o governo não honrar suas dívidas em precatórios, agindo como um caloteiro qualquer, põe no colo dos brasileiros o desafio de arcar com as consequências do grande desastre por mais alguns anos, senão gerações.
Ainda dá tempo. Sempre há caminho certo. Mas a condição para nossa redenção, em 2023, exigirá firme repulsa dos eleitores à adoração dos bezerros de ouro da política brasileira. Já desconfiamos quem são esses dois bezerrões. Por enquanto, contudo, percorreremos um descaminho contra o qual nem Deus é remédio.
(*) Paulo Rabello contribui quinzenalmente para essa coluna