A expressão popular “Com quantos paus se faz uma canoa” significa que nem sempre é fácil reunir o que é preciso para fazer a coisa certa. Esse é o desafio de Lula ao se apresentar, pela terceira vez, para liderar um país rigorosamente dividido ao meio entre duas rejeições de dimensões nacionais.
Sua vitória foi na vírgula, dentro da decantada “margem de erro”, não obstante legal e irrevogável. Mas para fazer a canoa do Brasil navegar com estabilidade e rumo, a liderança de Lula tem que mostrar mais elementos construtivos do que a boa agenda de desejos contida em sua Carta ao Brasil, documento de campanha emitido pouco antes da votação em segundo turno e repetida na longa fala do candidato vencedor ao final da contagem dos votos.
Seriam três as principais grandezas do desafio posto ao experiente político. Primeiro, o de uma economia travada pelo baixo potencial de crescimento. Na campanha, Lula nem tocou nesse tema, apenas repetindo que o país precisa gerar mais empregos “de carteira assinada”, o que nos remete ao impasse dos custos da indústria brasileira, leia-se reforma do manicômio tributário.
O segundo desafio é, por assim dizer, dentro da cozinha do governo, portanto um impasse de gestão, pois as promessas generosas da campanha – aumentar auxílios e salário mínimo, elevar isenção de Imposto de Renda, promover mais investimentos nos estados, entre tantas outras bondades, até justas – não cabem em nenhum orçamento equilibrado, a menos que outras despesas de cunho obrigatório passassem por uma revisão baseada em eficiência. Muito difícil de acontecer.
Por último, um desafio maior ainda, que é o de fazer funcionar bem o que foi desenhado para não dar certo: a representação política fragmentada do Congresso, que espelha muito mal o que seria uma “agenda política do povo brasileiro”. Para aperfeiçoar essa canoa, seria necessária uma revisão constitucional das regras eleitorais, como a supressão do direito à reeleição em cargos executivos e mesmo no Legislativo, o excrescente voto proporcional e outras aberrações.
Apesar do tamanho do projeto da canoa, o candidato eleito reúne habilidades e experiência, além de ter buscado um vice – Geraldo Alckmin – com capacidades políticas similares às dele próprio para tentar a tarefa de mobilizar o país, estimulando os nervos ociosos do organismo coletivo. A questão também é de tempo e de sorte ao escalar um time de apoio que traga soluções efetivas em prazos curtos que se esvaem nos poucos dias de uma transição já pontuada por compreensíveis interrupções de descanso, por turnês pelo estrangeiro e festas de fim de ano. É muito pouco tempo para martelar pregos nessa canoa. Não dá para chegar aprendendo. É preciso chegar fazendo.
A primeira medida do futuro presidente já provou sua argúcia de gestão política, ao nomear o vice como coordenador da transição. Geraldo Alckmin é quem, como candidato na campanha de 2018, havia construído o mais amplo leque de alianças com os partidos que a mídia chama de Centrão. Ele sabe em que portas bater e o que dizer; portanto, vai reunir os paus que faltam para a canoa navegar, ao mexer nas rubricas orçamentárias que viabilizem o atendimento das mais urgentes promessas da chapa Lula-Alckmin. O presidente eleito pegou para si o conserto da frente externa, do diálogo com líderes do Ocidente e dos Brics, algo que consegue fazer bastante bem. No tumultuado ambiente mundial, que vai piorar bastante antes de melhorar, toda delicadeza é necessária para construir pontes em vez de derrubá-las.
Resta a frente federativa, de longe a mais complicada, pois é cascuda a agenda com os 27 governadores, dos quais 14 de inclinação oposicionista, e com uma ampla lista de reivindicações – que vão da reposição das receitas de ICMS perdidas pela nova lei que uniformizou e rebaixou as alíquotas sobre combustíveis, energia e comunicações, até uma revisão (aliás necessária) dos termos das dívidas carregadas pelos estados perante o Tesouro Nacional. Lula falou em pedir aos governadores que apontassem seus dois ou três principais projetos de investimentos regionais. Seria esse o esboço de um novo PAC, o polêmico Programa de Aceleração do Crescimento, de 2007. Lula também acenou com a participação do BNDES nesse esforço, o que faria todo sentido. Mas como, se o banco de desenvolvimento está para ser sangrado em mais R$ 45 bilhões em devolução antecipada ao Tesouro, após anos – desde 2016 – de sucessivas “doações de sangue” que deixaram o BNDES uma instituição financeira esquálida? São desafios de primeira grandeza que, provavelmente, dependerão de emendas à Constituição. Lula ganharia um tempo precioso se essas PECs viessem envelopadas numa ampla revisão constitucional.
O tempo urge, os paus estão espalhados no terreno e a canoa ainda por construir.