A querela entre fiscalistas, com sua ênfase no bom fechamento das contas públicas, e “socialistas”, reclamando prioridade – a qualquer custo – ao socorro para a base da pirâmide social, revela quanto ainda precisamos evoluir para o país chegar a uma discussão bem-informada sobre os vastos e polpudos gastos do governo. De fato, a maioria de nós vive no escuro por ignorar quase tudo na esfera pública. Ainda bem, pois se a boa informação estivesse disponível, o povo talvez saísse às ruas por uma guerra contra os desmandos. Vejamos por quê.
Primeiro: não se trata de falta de recursos, seja para o presidente, para o governador ou prefeito. Gasta-se a rodo no setor público brasileiro. A máquina pública consome quase 40% do total da produção brasileira, em linha com o dispêndio de países maduros, que dão efetiva devolução ao povo sob forma de prestações sociais. Aqui, em geral, não. Ou seja, gastamos como gente grande, mas produzimos benefícios públicos de gente pequena.
Segundo: o gasto no Brasil tem uma peculiaridade cruel por ser engessado. O governante é eleito, digamos Lula, mas não tem mandato para sequer cogitar de mexer na estrutura de gastos herdados dos anos anteriores. Os servidores são estáveis, os salários irredutíveis, os compromissos financeiros imexíveis, os gastos setoriais em contínua expansão. A atual regra do teto de gastos, de 2016, tentou fazer o congelamento definitivo desses gastos, atrelando sua revisão exclusivamente à inflação ocorrida no período. A máquina pública se fez sócia da inflação. Tendo inflação, o teto muda. Se houver crescimento, aumento da produção e da arrecadação, aí não.
Ninguém precisa expressar a burrice contida nessa regra, que atrelou a expansão do gasto a um fato ruim da economia: mais inflação. Resultado previsível é que, quase todo ano, desde 2017, o teto de gastos vem sendo furado e desmoralizado. Não vejo nenhum “fiscalista”, defensor dessa regra estúpida de controle do gasto, criticar e pedir a mudança da regra que define a elevação do teto. Ponto para os socialistas, que intuem – sem entender como nem por quê – que o gasto social prioritário não pode ficar a reboque de uma regra errada e impraticável desde o início.
Terceiro: se o governo arrecada horrores, gasta trilhões, então não é por falta de recursos, mas por vontade de perpetuar gastos estéreis, desnecessários, que não sobra espaço para o lado social. Não sobra? Nem isso é verdadeiro. O gasto social no Brasil já é um dos mais inchados do mundo. Quase um trilhão todo ano, contando a Previdência. Mas o presidente, como disse, não pode sequer cogitar de mexer nos dispêndios “dos outros”.
Em Brasília, cada cacique é dono de um pedaço. Por isso, Lula enviará uma PEC para autorizar mais de cerca de R$ 100 bilhões em 2023, sendo R$ 75 bilhões para completar o Bolsa e R$ 25 bilhões para um novo PAC de investimentos, para os governadores. Todo mundo sairá da mesa alegre e se gastarão mais R$ 100 bilhões sem nem uma pergunta sequer sobre o destino do outro trilhão que já estava no Orçamento para o social. Em suma, os socorros sociais – justos até – para a população mais carente sempre se farão por acréscimo à montanha de despesas já pactuadas e que não podem ser alteradas pelo gestor da hora.
Lula, sendo Lula, não perdeu um minuto debatendo a revisão “técnica” da regra do teto. Deixou fiscalistas e o mercado falando sozinhos, ao bolar uma regra nova que estabelece certos gastos – sociais e de investimentos – como “não gastos”. Resolvido. As reações negativas dos índices na bolsa, no câmbio e nos juros, irão todas para a conta do atual mandatário, hoje recluso, aumentando o desgosto e a santa ira de quem torcia por outro resultado. Paciência e caldo de galinha.
Um dia, que não será em breve, debateremos avanços reais nos controles dos orçamentos brasileiros. Existe, por exemplo, um Conselho de Gestão Fiscal, previsto na Lei de Responsabilidade desde o ano 2000, que nunca foi instituído por nunca ter sido votado. Nenhum fiscalista, que eu saiba, se lembra de cobrar esse conselho. Tampouco os fiscalistas de plantão se lembram de aprovar as “revisões periódicas” de gastos, ou de instituir um “orçamento base zero”, que faria no governo como fazemos em casa: revisar os gastos TODOS da casa a partir do zero.
Se assim se fizesse, não haveria socialistas chorosos pela falta de cobertura da pobreza, pois cada centavo gasto no social seria avaliado e cobrado na ponta. Esse procedimento, no entanto, é muito sem graça, porque é sério. Quem quer ser sério quando se trata de gastar o dinheiro que não é seu? Por isso é que nem fiscalistas nem socialistas têm razão. Mas ambos estão de acordo sobre quem pagará a conta: sempre o cidadão. Via tributação.