Qual o principal desafio do terceiro mandato de Lula? Numa palavra, ser capaz de superar seu próprio discurso, ou seja, ultrapassar a narrativa de combate à fome e à pobreza que o levou de novo ao poder. Explico. Num período de 10 anos – a última década, medida entre 2013 e o fim deste 2022 – o Brasil apresenta as seguintes condições de desempenho: a população brasileira veio de 198,5 milhões para 214,5 milhões de habitantes no período, numa variação de 8% (mais 16 milhões de indivíduos); enquanto isso, a parcela ocupada dessa população variou de 90 milhões a 99 milhões de trabalhadores (mais 10% ou 9 milhões de novos postos de trabalho).
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O futuro governo de Lula: é responsabilidade fiscal ou é social?A política afetará a economia? Hora do pânico nas estatísticas e nas sondagensAgora vem o lado escandaloso da realidade: enquanto estancavam as oportunidades de trabalho de qualidade no nível de 36 milhões de vagas em 10 longos anos, explodia a assistência social via benefícios diversos. Apenas na soma do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e Auxílio Brasil (antes Bolsa-Família), o salto no período foi de 9 milhões, passando de 18 milhões de assistidos (números redondos, sem computar familiares) para 27 milhões, ou seja, um acréscimo de cobertura da ordem de 50%! O acréscimo de assistidos (9 milhões na década) se igualou à adição de postos formais e informais de trabalho. Viramos uma enorme fábrica de produção de assistidos.
Pelo prisma social, a ajuda se fez necessária e ainda se faz hoje. Mas sob a ótica de avanço da sociedade, seja medido por PIB ou por empregos, a década foi um desastre completo. É escandaloso constatar sermos um país que desenha políticas para assistir a quem não consegue empregar nem hoje, nem amanhã nem nunca. Trata-se de um país de assistidos, que se habituam a pensar e agir como tal. Socialmente, é uma tragédia política anunciada pela alta dose de uma cultura de dependência e conformismo que há muito vem se incorporando ao tecido populacional brasileiro.
Não quer dizer que a vontade de trabalhar, ter emprego estável e poupar para o futuro não seja a mola que anima o adulto brasileiro a sair da cama todos os dias. Mas a esperança já emigrou daqui. Num exercício de imaginação, caso os EUA e Portugal – por mera fantasia – resolvessem lançar um programa de imigração para brasileiros entre 18 e 45 anos, com autorização de trabalho e seis meses de adaptação e treinamento, quantos nessa faixa etária realisticamente sobrariam no Brasil por preferir lançar sua sorte aqui, e não lá? Talvez uns 20% desses adultos, se tanto.
Essa situação escandalosa está obviamente ancorada em escândalos associados para os quais as forças de todo o espectro político brasileiro vêm concorrendo, sem exceção: o soterramento da competitividade industrial brasileira, a crescente extração financeira e tributária num dos países mais perdulários do planeta, que suga as poupanças populares para o buraco negro dos gastos públicos estéreis, a debacle dos investimentos em infraestrutura e inovação e, por óbvio, a mais descarada e incurável corrupção e impunidade.
O desafio do presidente eleito é, portanto, o de superar seu próprio discurso de vencer a pobreza com os mesmos instrumentos de perpetuação da exclusão de emprego e do estancamento produtivo. Por suposto, nenhum economista na equipe de transição discordaria de que o objetivo final não é ampliar sem limites o guarda-chuva dos assistidos, mas, sim, o de retomar a criação de empregos produtivos. Só que quase nenhuma palavra foi dita sobre essa meta final. Ficamos sempre nos entretantos. O eleito ainda é o presidente do combate à fome. O país dos trabalhadores ainda não reencontrou seu rumo nem reconhece quem o levará a resgatar a esperança no Brasil do Trabalho.