Último dia do ano. Tempo de reflexão. E momento de consternação pelo apagar da maior estrela do firmamento esportivo brasileiro e mundial no século 20. A passagem de Pelé, rei verdadeiro de uma geração inteira de fãs e admiradores, mundo afora, do futebol-arte e da dignidade-fora-de-campo, marca com precisão de cronômetro o fim do ciclo da grandeza que o Brasil viveu ao longo de boa parte do século passado, replicando os feitos da vida terrena de Pelé.
O relógio biográfico da majestade dos estádios – Edson Arantes –, nascido em 1940, marca também a explosão do avanço da nação, quando o Brasil corria atrás da sua projeção urbana e industrial, arrojando-se na integração produtiva nacional, na geração de energia, na manufatura pesada, na educação de pessoas vocacionadas para o trabalho.
Todo esse desenvolvimento exuberante, do qual JK foi o astro maior na Política, também se convertia - pari passu - em grandeza nos campos de futebol, um esporte que tanto depende do talento superior de uns quantos indivíduos marcados pela genialidade como, principalmente, da força coletiva de uma equipe (ou de uma população) articulada e disposta ao sacrifício que for preciso para atingir metas e conquistar vitórias inéditas.
Parece coincidência, mas a aposentadoria de Pelé como craque, ao pendurar as chuteiras ao fim dos anos 1970, também marca o início da desistência do Brasil, como corpo coletivo, de continuar batalhando por feitos extraordinários. Os resultados do crescimento nacional espelham tal declínio.
Em particular, a partir da “estabilização” do plano Real, não temos feito mais do que marcar passo. Nesses longos 40 anos de declínio, o Brasil não conseguiu sequer acompanhar a média do avanço mundial (de 3,5% ao ano) pois capengou ao ritmo de magros 2% anuais, entre momentos um pouco melhores (Lula 2) e outros francamente péssimos (Dilma 2). No futebol, não foi diferente: o Brasil ainda se projetou duas vezes– 1994 e 2002 – com o tetra e o penta campeonatos mundiais, mesmo sem Pelé, mas ainda embalado pela memória do ciclo da grandeza, hoje em franco ocaso.
O espantoso ciclo de conquistas brasileiras do século 20 se encerra, agora, na prorrogação deste 2022, sem hexa, sem Pelé, sem técnico e sem a mínima pista do que poderíamos querer ser, no futuro próximo, ou realizar com arte e integridade, como Seleção de futebol e como Nação. A recente escalação ministerial, com um caminhão de 37 convocados por Lula para jogar no primeiro escalão do futuro governo peca por excesso de quantidade e buracos de qualidade, com goleiros escalados como volantes, atacantes escolhidos pela tinta do cabelo e uma garra medida em função do cachê da propaganda na TV.
A diferença em relação à atitude que sempre pautou a vida de Pelé e seus companheiros é abissal. Não podemos, portanto, esperar por resultados iguais aos deles se, hoje, os sentimentos que animam nossas lideranças são tão diferentes. As homenagens, entre simpáticas e saudosas, nas matérias televisas, lembrando Pelé e seu tempo, bem como o registro que o mundo ainda tem do Brasil em função do seu aclamado rei, deixam claro o vazio de perspectivas para o país, quando avaliado como uma equipe tentando jogar para o conjunto, para alcançar um grande resultado. Não há conjunto; muito menos resultados.
O país segue dividido e inconformado com o placar político. O time apontado como vencedor quer levar a bola pra casa. Brasília, em festa micareta, sagrará amanhã um novo monarca, mas o espírito popular ainda perambula, como órfão, em busca de exemplos a seguir e história para inspirar um ponto de virada nesse cabisbaixo fim de ciclo.
Pelé partiu. Nós seguiremos partidos, embora não vencidos, pois nossa história tem prosseguimento. Que a força espiritual de Pelé, com sua história de gols de placa, nos motive a resgatar a dignidade de um jogo bem jogado, capaz de devolver entusiasmo à galera do nosso Brasil. Que venha o 2023.