As chuvas torrenciais sobre o Sudeste do país, especialmente na costa verde paulista, entre sábado e domingo de carnaval, anteciparam uma longa e sofrida lágrima de tristeza sobre a face maquiada do Pierrô. Foi um carnaval amargo esse de 2023, que deveria ter marcado a retomada da alegria na alma nacional após a agonia da COVID. Para a maioria dos brasileiros, bastaria a tragédia no litoral norte paulista, com seus mais de 50 mortos contados e recontados ao longo dos dias feriados, para dar um tom de quarta de cinzas aos desfiles oficiais e aos blocos de rua. O estado de euforia no ser humano não convive bem com a certeza das perdas. Para outros, perceptivos mais atentos, não só pelo patético desaparecimento de dezenas de cidadãos, em meio a paus e lama, mas sobretudo por um algo mais pairando no ar, temos certa licença de tristeza em pleno carnaval.
Conferi com alguns amigos, que constituem bom termômetro dessa temperatura da desesperança no país, neste começo de ano, de governos novos, em Brasília e nos estados. Inescapável aquele cheiro de café requentado vindo de algum lugar no fundo de casa. Choveu demais? Sim, umas dez vezes mais do que seria o registro de chuva forte sobre uma região. Mas estamos em fevereiro e a natureza, embora madrasta pela violência orográfica sobre a costa verde, não fez além de repetir o pedágio de destruição com que costuma retomar o sequestro, pelo homem, de caminhos invisíveis da chuva nas vertentes dos morros. “Por aqui, antes passo eu”, diz a natureza caprichosa.
Nós precisamos saber conviver com essas demarcações camufladas de verde. Mas fato é que não temos bom currículo de uma convivência inteligente, em pleno século dos chamados “fenômenos extremos”, como se prognosticam os eventos da natureza em fúria nas décadas vindouras. Quanto tempo mais vamos demorar para aprender alguma coisa em termos de prevenção, de contenção de danos materiais e, sobretudo, de evitar as perdas de vidas humanas?
A sensação de repetição da estupidez foi água no chope da folia carnavalesca. O bloco oficial, das “autoridades constituídas” – dos governos locais aos mandatários do Planalto Central – desfilou, como sempre, com atraso para entrar na avenida do desastre e, ainda, cantando marchinha repetida de carnavais anteriores. Nem o presidente, com sua inimitável prosa fácil, conseguiu dar um tom menos empastelado à realidade palpável do berrante despreparo da máquina pública para o enfrentamento de desafios fora do rame-rame diário.
Os municípios da região, embora beneficiários de recursos extraordinários dos royalties do petróleo, nem aparecem na foto de reação imediata em socorro às vítimas. São os cidadãos voluntários, as ONGs eventuais e os doadores apiedados que se mobilizam com mais rapidez. Fica escancarada a inanição dos meios locais de socorro. É escandalosa também a bola nas costas da população pela falta de um sistema de alerta antecedente utilizando redes sociais e televisivas, ainda que apenas com alguns preciosos minutos de antecedência ao horário de pico da tragédia. Isso para não falar da vista grossa da fiscalização sobre a ocupação irregular e perigosa de locais para habitações do povo trabalhador, espremido entre a distância do trabalho e a distância do perigo. Há ferramentas tecnológicas e há órgãos, federais e estaduais, destinados à tarefa de prevenir danos por eventos extremos.
O país está razoavelmente mapeado. Mas a manipulação dos orçamentos públicos, sempre reféns das pressões políticas e da rigidez de gastos obrigatórios, tem feito os ministros e secretários de Fazenda virarem fantoches do regabofe dos dispêndios compulsórios, sem nenhuma explicação plausível. Os cidadãos que pereceram sufocados no mar de lama da Vila do Sahy certamente morreram desconhecendo que pagaram, sua vida inteira, uma das cargas tributárias mais injustas e regressivas (pobres pagando mais...) do planeta; com mais de cinco tributos diferentes escondidos em cada ingrediente do magro prato de comida do contribuinte, soterrado pela falta de aviso prévio da tragédia. Bem-aventurada a ignorância pelos tributos pagos em troca dos alertas não recebidos. Esses cidadãos se foram na inocência do seu total desconhecimento de como se organiza o tal Estado democrático de direito em terra brasilis.
A impunidade da inoperância invade tudo e se firma, na constelação de nossas limitações, como grupo social, na categoria máxima de “defeito incorrigível”. Não há dúvida de que a inoperância, tolerada como liturgia pelas elites dirigentes, é um verdadeiro pacto para “deixar tudo como está, por mais que mude”. Nesse sentido, bastante prático, só um ente prevalece sobre todas as demais vontades neste país: o querer do Estado, sem adjetivos, nem democrático, muito menos de “direito”. Quem detém o Estado, deterá a chave desse querer, determinando vantagens e especificando situações, desde que não ponha em risco o sutil e silente equilíbrio alcançado em torno da inoperância geral. O carnaval, como alegria coletiva espontânea do brasileiro em quase perfeito estado de não saber nem desconfiar de nada, é uma festa compatível com nossa atual vivência de um Estado de script combinado e de cartas marcadas.
Não deveríamos estranhar esse gosto amargo de festa com dor.
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