Legislar é saber administrar controvérsias. Eduardo Braga, relator da Reforma Tributária no Senado Federal, tem o desafio de mudar o caótico sistema dos impostos de consumo no país sem agredir o bom senso nem frustrar expectativas de segmentos econômicos, de entes públicos e de interesses políticos entre seus pares no Congresso. É uma equação das mais complicadas.
Para viabilizar o consenso mínimo necessário à sua aprovação, o texto da reforma tributária precisa respeitar certas realidades estabelecidas mas, sempre que possível, deve induzir a simplificações da legislação tributária, pois esta é a maior inspiração da reforma. Braga tem que gerenciar um balanço delicado entre o saber manter e o saber mudar.
As realidades estabelecidas incluem admitir que: 1) o Brasil continuará sendo o País com a mais elevada taxação sobre o consumo no mundo, hoje na faixa de 29%; 2) temos, como poucos países, três níveis de governo – União, 27 estados (com DF) e 5570 municípios (com DF) todos ávidos de se abastecer com recursos desses tributos; 3) nenhum setor ou ente se conformará em ser o grande perdedor da reforma, a pagar a conta dos ganhos dos demais à sua volta.
Tais realidades impõem algumas limitações relevantes ao trabalho do relator. Primeiro, ele precisa esquecer de adotar o imposto IVA de alíquota única. Isso porque o Brasil está diante da realidade imutável de vir a ter o IVA mais elevado do planeta, na faixa de 30%, que é não apenas o dobro, mas o triplo, de um nível razoável, em torno de 10%. O simples bom senso nos indica que alguns tipos de gastos da população, como a cesta básica alimentar e de higiene, os medicamentos, os serviços prestados a pessoas, por sua essencialidade, não podem ser taxados em 20 ou 30%.
É consenso mundial que os gastos essenciais sejam isentos de imposto ou tenham, no máximo, uma taxação super reduzida. Se o senador Eduardo Braga anunciar que adotará um IVA com quatro faixas de alíquotas, além da de referência, ele vai se livrar do impasse que enfrenta hoje, diante de um sem-número de pedidos de segmentos que desejam ser tratados como “exceções”. De fato, não devem existir exceções e, sim, níveis variados de enquadramento, dentro dos cinco níveis do IVA. Para tal fim serve o regime de múltiplas alíquotas, adotado na grande maioria dos países, inclusive na Índia, em cuja reforma recente se adotou o mesmo IVA de variadas faixas. E o nosso será, fatalmente, um IVA multivariado, desde o nível de isenção completa, para uma Cesta Básica, até o nível mais alto, incidente sobre certos consumos altamente danosos e poluentes. O senador Braga precisa delimitar tais faixas para afastar pedidos de tratamentos especiais.
Em segundo lugar, Eduardo Braga precisa dar a cada ente da federação – União, estados e municípios - a perspectiva de continuar a receber sua arrecadação sem perdas ou ganhos relevantes. No texto da PEC 45, que emergiu da Câmara dos Deputados, os estados, no conjunto, serão grandes ganhadores – embora haja, entre eles, francos perdedores, como o Amazonas, do próprio senador - enquanto a União sofrerá perdas fiscais vultosas pelo desembolso de futuros fundos de compensação aos estados. Enquanto isso, os municípios, sobretudo os de maior porte, perderão feio, pelo estranho modo, lá previsto, de se repartir o tributo com base no critério populacional e não do valor dos serviços prestados nas cidades. O municipalismo, como força gestora da vida diária dos cidadãos, por enquanto sai desprestigiado nessa reforma. Os prefeitos não terão a mínima segurança de manutenção de suas receitas, especialmente os municípios de maior dinamismo econômico, o que é um grave contrassenso.
Por fim, esta é uma reforma que não garante o mínimo de equilíbrio entre as incidências e repartições atuais de receitas e aquelas que decorrerão das novas regras. Ninguém no governo, ou associado a ele, foi capaz de produzir testes e simulações confiáveis da transição para os novos impostos. Prevalece, por exemplo, entre os prestadores de serviços, a percepção correta de que pagarão a conta amarga do futuro tributo, com majorações que virão a dobrar ou triplicar a carga impositiva sobre suas atividades. A reforma tributária vai bater contra um muro se persistir pelo caminho de sobretaxar alguns segmentos para, com isso, repassar reduções de carga para outros.
Ninguém sabe ao certo como será. E por não se saber quais serão os níveis finais de taxação e repartição de receitas, o texto da reforma foi elaborado para fazer sua implantação ser retardada a perder de vista (seria só em 2033) e, com muito mais tempo ainda (até o insondável ano de 2978), para fazer convergir a repartição da arrecadação conforme as novas regras. Diante de tantos desdobramentos desconhecidos, a Câmara então concebeu um Conselho Federativo onde pretende que as futuras disputas entre estados e municípios do Brasil inteiro, todos juntos e embolados, sejam aí resolvidas! Não corre o mínimo risco de dar certo.
Os desafios do relator Eduardo Braga são, de fato, enormes. No entanto, a palavra de ordem é simplificar, sem querer complicar. Então o que Braga pode fazer na prática? O Atlântico, instituto de estudos, e a ACMinas, levaram ao Senado, em mãos do seu presidente Rodrigo Pacheco, sugestões num Substitutivo à PEC 45, encampado pelo também senador Hamilton Mourão, que são aqui resumidas. 1) Criar o regime de IVA multivariado, com cinco níveis, onde todos os segmentos de atividades hão de se enquadrar, respeitando, de modo geral, as cargas tributárias atualmente praticadas. 2) Readequar os ganhos dos estados e equilibrar a repartição do novo imposto, em cada unidade da Federação, com seus respectivos municípios, que receberão 40% da nova receita estadual. 3) Suprimir o tal Conselho monstrengo e criar algo simples, uma Câmara de Compensação de Tributos, que vai operar uma espécie de inteligência artificial dos impostos (ONDA), na linha de um “PIX tributário”, que registrará cada transação fiscal - como se faz hoje na Índia – calculando para o contribuinte o tributo devido, deduzindo os créditos de cada etapa anterior, de modo a simplificar a vida das empresas e de seus contadores, além de repartir, em seguida, a arrecadação de modo diário e automático aos entes federados.
Se o senador Eduardo Braga vier a incorporar o mecanismo digital do ONDA em seu relatório, a reforma tributária terá dado um grande passo para se viabilizar. E não só isso. Com um operador digital compatível com as tecnologias mais avançadas, é possível implantar essa esperada reforma ainda na gestão Lula, que por ela responde politicamente. Todos ganharão pelo impacto de uma mudança, como na Índia, cuja implantação foi iniciada em 2017 e já está completa desde o ano passado. A reforma brasileira, francamente, não pode se arrastar até o final deste século. Temos a obrigação moral de fazer melhor do que isso.