É aquele negócio. Basta uma criança afogada numa praia da Turquia, numa das fotografias icônicas do jornalismo, para a humanidade perceber o tamanho da dimensão da crise migratória na Europa, que mata outras milhares anônimas todos os anos, na travessia suicida em busca de sobrevivência.
Ou o pequeno vídeo do menino Henry, de cuequinha branca, mancando pelo corredor depois de ter sido espancado pelo padrasto no quarto, para a gente entender o tamanho da tragédia de crianças reféns de lares disfuncionais, por psicopatia ou miséria, numa infinidade de lares.
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'Inventaram gabinete do ódio, é o gabinete da liberdade', diz BolsonaroBolsonaro ameaça baixar decreto contra lockdown: 'Vai ser cumprido'Morte de Paulo Gustavo: Bolsonaro é alvo de opositores após nota de pesarBolsonaro escolhe pior das alternativas para calar denúncia da CovaxinNovo ridículo é patrulhar ideologicamente quem está quieto no seu cantoLulismo sofistica discurso para evitar 'falsa simetria'O que ainda explica o grande apoio a Bolsonaro nas pesquisas?O ator e humorista, adotado como um parente próximo pela maioria das famílias, num tipo de paixão que remete a ídolos como Garrincha, Cazuza ou Ayrton Senna, foi o maior dos socos no estômago dos que tantos que vínhamos tomando todos os dias, desde março passado.
Vínhamos contando as mortes de nossos parentes e amigos, cada vez mais próximas e cada vez menos compreensíveis, baratinados para entender por que o amigo ou parente de pé na quinta-feira estava morto no domingo.
Ou que idade ou diabo de doença pré-existente, a chamada comorbidade, tinham os ídolos que frequentavam nossa sala, como Agnaldo Timóteo, Eduardo Galvão ou Nicette Bruno.
Mas a morte dele, que tanta esperança coletiva tentava adiar, parece ter afetado aquele tipo de unanimidade sentimental, nacional, de que a inteligência e a alegria eram possíveis num país tão machucado.
Que elas poderiam fazer, como ele fez sem parecer que estivesse querendo, uma revolução de costumes e de mentes sem proselitismo político.
Que elas poderiam ser tão agregadoras num país que parece ter perdido o senso de humanidade.
Quis o destino que tivesse morrido na mesma terça-feira ingrata em que o ex-ministro de Saúde demitido após uma cadeia de erros, Luiz Mandetta, desenhou para os senadores da CPI da Covid o pontapé inicial de outra cadeia de desatinos que ampliaram a nossa tragédia.
O presidente da República apostou na tese da imunidade de rebanho, segundo a qual uma epidemia só acaba quando faz 70% de infectados e nada há por fazer antes disso, senão enterrar os mortos e consolar os vivos. Que ele também não fez.
Ter abraçado a tese explica quase tudo, como o principal: a barrigada comprovada na compra de vacinas. Até o fim do ano e antes que João Dória anunciasse que começaria a vacinar São Paulo de qualquer jeito, ele só tinha aceitado conversar sobre a proposta da Fiocruz.
Que projetava uma vacina própria para tornar o país auto suficiente e exportador, sabe-se lá quando. Num cenário em que só a imunidade de rebanho salvaria, não haveria por que apressar campanhas de imunização em massa, certamente vistas como caras e também remotas. E nem necessariamente usar máscaras e des-aglomerar.
A história ainda vai dar conta da responsabilidade dos burocratas da Ciência governamental, de Manguinhos ao Palácio, puxados pelo grande teórico da tese, Osmar Terra. Foram os que deram base pseudocientífica à sanha do presidente da República de apostar no infinito e jogar todas as suas fichas contra o que Mandetta e o mundo diziam.
É dessa época que ficaram os registros retóricos de que as vacinas em produção eram conspiração chinesa, produziam jacarés ou quebrariam o país em tribunais internacionais.
A boa análise política não autoriza a simplificação de se responsabilizar o presidente da República pela tragédia pessoal de Paulo Gustavo, em meio à de mortes de humanos em massa, como moscas, aqui e no mundo. Já havia vacina quando ele começou a sentir os sintomas, no início de março, com o azar de estar longe dos grupos prioritários do plano nacional de vacinação.
Mas, como todo símbolo que transcende sua história individual, ele transpira como nenhum outro a sensação de que estaríamos em situação menos trágica não fossem tantos equívocos. Capitaneados pelo presidente em cima de seus enormes erros de avaliação e sob a trupe de equivocados que preferiu escolher para ouvir.
A essa altura, quer ele queira ou não, queiram ou não a análise política ou a história, a morte de Paulo Gustavo ainda vai pairar um tempo como a foto do menino achado morto na praia da Turquia ou do menino Henry manquitolando no corredor.
No coração das pessoas que perderam seus amigos, seus parentes e seus ídolos, Paulo Gustavo sobretudo, a impressão de sua responsabilidade nessa fatura aumentou exponencialmente.
Sim. Simbolicamente, Bolsonaro tem um pouco mais de culpa.
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