É aquele negócio. Basta uma criança afogada numa praia da Turquia, numa das fotografias icônicas do jornalismo, para a humanidade perceber o tamanho da dimensão da crise migratória na Europa, que mata outras milhares anônimas todos os anos, na travessia suicida em busca de sobrevivência.
Ou o pequeno vídeo do menino Henry, de cuequinha branca, mancando pelo corredor depois de ter sido espancado pelo padrasto no quarto, para a gente entender o tamanho da tragédia de crianças reféns de lares disfuncionais, por psicopatia ou miséria, numa infinidade de lares.
Paulo Gustavo, como principal referência do tamanho da tragédia em que estamos metidos.
São símbolos, como passou a ser desde terça-feira (04/5) O ator e humorista, adotado como um parente próximo pela maioria das famílias, num tipo de paixão que remete a ídolos como Garrincha, Cazuza ou Ayrton Senna, foi o maior dos socos no estômago dos que tantos que vínhamos tomando todos os dias, desde março passado.
Vínhamos contando as mortes de nossos parentes e amigos, cada vez mais próximas e cada vez menos compreensíveis, baratinados para entender por que o amigo ou parente de pé na quinta-feira estava morto no domingo.
Ou que idade ou diabo de doença pré-existente, a chamada comorbidade, tinham os ídolos que frequentavam nossa sala, como Agnaldo Timóteo, Eduardo Galvão ou Nicette Bruno.
Mas a morte dele, que tanta esperança coletiva tentava adiar, parece ter afetado aquele tipo de unanimidade sentimental, nacional, de que a inteligência e a alegria eram possíveis num país tão machucado.
Que elas poderiam fazer, como ele fez sem parecer que estivesse querendo, uma revolução de costumes e de mentes sem proselitismo político.
Que elas poderiam ser tão agregadoras num país que parece ter perdido o senso de humanidade.
Quis o destino que tivesse morrido na mesma terça-feira ingrata em que o ex-ministro de Saúde demitido após uma cadeia de erros, Luiz Mandetta, desenhou para os senadores da CPI da Covid o pontapé inicial de outra cadeia de desatinos que ampliaram a nossa tragédia.
O presidente da República apostou na tese da imunidade de rebanho, segundo a qual uma epidemia só acaba quando faz 70% de infectados e nada há por fazer antes disso, senão enterrar os mortos e consolar os vivos. Que ele também não fez.
Ter abraçado a tese explica quase tudo, como o principal: a barrigada comprovada na compra de vacinas. Até o fim do ano e antes que João Dória anunciasse que começaria a vacinar São Paulo de qualquer jeito, ele só tinha aceitado conversar sobre a proposta da Fiocruz.
Que projetava uma vacina própria para tornar o país auto suficiente e exportador, sabe-se lá quando. Num cenário em que só a imunidade de rebanho salvaria, não haveria por que apressar campanhas de imunização em massa, certamente vistas como caras e também remotas. E nem necessariamente usar máscaras e des-aglomerar.
A história ainda vai dar conta da responsabilidade dos burocratas da Ciência governamental, de Manguinhos ao Palácio, puxados pelo grande teórico da tese, Osmar Terra. Foram os que deram base pseudocientífica à sanha do presidente da República de apostar no infinito e jogar todas as suas fichas contra o que Mandetta e o mundo diziam.
É dessa época que ficaram os registros retóricos de que as vacinas em produção eram conspiração chinesa, produziam jacarés ou quebrariam o país em tribunais internacionais.
A boa análise política não autoriza a simplificação de se responsabilizar o presidente da República pela tragédia pessoal de Paulo Gustavo, em meio à de mortes de humanos em massa, como moscas, aqui e no mundo. Já havia vacina quando ele começou a sentir os sintomas, no início de março, com o azar de estar longe dos grupos prioritários do plano nacional de vacinação.
Mas, como todo símbolo que transcende sua história individual, ele transpira como nenhum outro a sensação de que estaríamos em situação menos trágica não fossem tantos equívocos. Capitaneados pelo presidente em cima de seus enormes erros de avaliação e sob a trupe de equivocados que preferiu escolher para ouvir.
A essa altura, quer ele queira ou não, queiram ou não a análise política ou a história, a morte de Paulo Gustavo ainda vai pairar um tempo como a foto do menino achado morto na praia da Turquia ou do menino Henry manquitolando no corredor.
No coração das pessoas que perderam seus amigos, seus parentes e seus ídolos, Paulo Gustavo sobretudo, a impressão de sua responsabilidade nessa fatura aumentou exponencialmente.
Sim. Simbolicamente, Bolsonaro tem um pouco mais de culpa.
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