Jornal Estado de Minas

MÍDIA E PODER

Novo ridículo é patrulhar ideologicamente quem está quieto no seu canto


Patrulhamento ideológico já é por natureza uma coisa calhorda, de gente covarde que precisa dobrar o outro a suas crenças para se sentir confortável em sua mediocridade.





 

Num segundo momento, denunciá-lo a seus iguais em busca de reforço para os argumentos racionais que não tem.

 

Pois inventaram coisa pior, o patrulhamento de quem não quer ter crença alguma, mas apenas o direito de ficar quieto no seu canto.

 

É um tipo de cobrança de incoerência de quem está querendo ser coerente com seus botões, sua vida e seu trabalho. Qual o problema?

 

A cantora Cláudia Leitte desceu aos infernos ao dar a Serginho Groisman, no Altas Horas, uma resposta mais existencial que política à pergunta sobre o que a indignava.

 

— Eu tenho um coração pacificador. Eu me indigno, sou capaz de virar tudo pelo avesso, chutar as barracas, mas eu acho que todo mundo tem um lugar onde pode brilhar uma luz para desfazer o que está acontecendo. E se essa luz se acende, obviamente, não vai ter escuridão.





 

Como Ana Maria Braga e Deborah Secco, também presentes, ecoaram o que é de bom tom na etiqueta de indignação geral contra os desmandos do governo, Cláudia foi acusada de "isentona". E, indignada com a pecha, cometeu a besteira de vir a público se desculpar por ser diferente.

 

Num título um tanto quanto patético pelo que incorpora de patrulhamento, o site G1 escreveu que "Cláudia Leitte pede desculpas por não se indignar com situação do país".

 

Suas desculpas, em vídeo nas redes, é uma ampliação da patetice de alguém que anula suas convicções para ficar do mesmo tamanho da mediocridade que a tentou nivelar:

 

— Mais do que um desabafo, esse era um momento em que eu precisava ter muita consciência de meu papel social e eu não tive. (...)  Eu acho que o artista tem um papel que precisa ficar muito claro. Eu subo num palco para cantar, eu sirvo o outro, movimento pessoas. Eu faço entretenimento, mas faço com uma missão, com um propósito. 





 

Tinha acontecido antes, com Felipe Neto, que patrulhou os cantores sertanejos por fazerem lives enquanto o país desaba. Aconteceu  duas semanas depois com a atriz Juliana Paes. 

 

Ela tinha publicado um post por razões humanitárias contra os excessos dos homens da CPI da Covid contra uma mulher, a médica Nise Yamaguchi, na linha da maioria das pessoas de bom senso que conheço.

 

Foi ao inferno como Cláudia, acusada de fazer o jogo do governo, e ao inferno e meio quando resolveu sair do seu canto para contestar os excessos de uma ex companheira de cena com o mesmo tipo de cobrança.

 

Diferente dela, cometeu o pecado maior de ser ela mesmo e afrontar os medíocres, tanto à direita quanto à esquerda.

 

— Eu não apoio os ideais arrogantes de extrema-direita, não apoio delírios comunistas da extrema-esquerda, eu quero respeito e acolhimento a todas as causas minoritárias, mas eu quero que isso aconteça independentemente de ideologia política.





 

Como sempre, tedioso como nunca, desde que o patrulhamento arrebentou a reputação de muita gente, desde Wilson Simonal, foi apoiada e condenada por listas de artistas de cada lado, ansiosos por uma cumplicidade salvadora que lhes dê conforto em suas crenças e sua falta de argumentos não ideológicos.

 

Cláudia e Juliana, como alguns sertanejos patrulhados por Felipe Neto, escolheram o pior caminho. Deveriam ter defendido o que disseram com algumas provas, a mais contundente prova de personalidade, ou o silêncio, que é sempre melhor conselheiro.

 

Em se podendo e tendo um pouco mais de coragem de perder seguidores e renda, poderiam ter fechado a caixa de comentários de suas redes sociais. Como ensinava o meu eterno guru Millôr Fernandes:

 

— Você não pode evitar que os urubus voem sobre sua cabeça, mas pode evitar que eles defequem nela.





 

Ou, melhor ainda, poderiam ter aprendido com Tite, o técnico da seleção que entrou no olho do furacão por ter apenas insinuado ser contrário aos interesses do governo no caso da Copa América. Quando o mundo veio abaixo, com direito a pancada até de um dos filhos presidenciais com a elegância de costume, respondeu que:

 

— Eu tenho muito respeito ao meu trabalho. As pessoas acham que devemos ter opinião para tudo quando devemos ter opinião é pelo futebol, devemos ter a nossa capacidade testada e nosso lugar de fala daquilo que nos diz respeito.

 

O negócio dos cantores sertanejos, como o de Cláudia, é música, assim como o Juliana é representação e o de Felipe Neto divertir as crianças com seu canal de joguinhos e curiosidades da internet, como uma Xuxa pós-moderna mais ideológica que vem gostando dos aplausos dos adultos.

 

Sempre achei que artistas deveriam se ater a seu ofício, sobretudo em entrevistas. Não porque não tenham direito de opinar sobre qualquer coisa. Mas porque são maiores quando falam de si mesmos, de suas obras e de seu processo de criação. 





 

Seu terreno, sua tribuna e seu heroísmo são suas produções. Sua revolução, a mensagem transformadora e subliminar que passam nela. Em diferentes graus, música e atuações arrebatadoras podem transformar tanto quanto grandes livros, peças e filmes.

 

Sinto particular irritação quando o entrevistador estraga uma conversa sobre o artista e sua obra com perguntas destinadas a cobrar-lhe opinião para salvar o mundo. 

 

Por essas razões, desliguei na metade o Roda Viva recente com o sensacional Fábio Porchat, que acessei para ouvir sobre seu processo de criação e seu envolvimento artístico com o mais bem sucedido canal de humor da internet do Brasil, o Porta dos Fundos.

 

Até aí, a bancada de três jornalistas de veículos alternativos e dois escritores só tinham procurado arrancar dele opiniões sobre assédio (a partir do caso Marcos Melhem), pautas identitárias, discurso de ódio e o papel do governo na pandemia.





 

O comunicador Edgar Piccoli cobrou-lhe uma especulação filosófica de solução geral para a humanidade e a superação da tragédia:

 

— Como você nos enxerga como sociedade e como você acha que vamos sair dessa?

 

A apresentadora Vera Magalhães tentou puxar pela sua relação com a religião, em face dos vídeos polêmicos do canal sobre Cristo, e o ilustrador Paulo Caruso fez uma intervenção — incomum por seu papel no programa — sobre seu processo de criação, mas não teve como a coisa desandar. 

 

Tal desvio de finalidade era absurda e irritantemente comum na mesma sociedade conflagrada da abertura democrática, final dos 80 e início dos 90. Os grandes da época — Fernanda Montenegro, Chico Buarque ou Caetano Veloso — eram aguardados na maioria dos programas de TV para pontificar, não de teatro ou literatura, mas de eleições diretas, inflação e dívida externa.

 

Tenho absoluta certeza de que Porchat não é a pessoa mais indicada para discorrer sobre a pauta que lhe apresentaram e renderia muito mais se tivesse cercado de profissionais que entendem do seu ofício, como Caruso, que se intrometeu por exceção.





 

Como Juliana, Cláudia, sertanejos, Fernanda Montenegro ou Chico Buarque não o são para palestrar sobre política econômica ou infectologia. Seus incômodos diante do governo ou do mundo só são relevantes como notas de rodapé, na medida em que influenciam seu processo de criação.

 

Cláudia Leitte está muito errada quando sugere em sua retração que tem um propósito político. Isso é marxismo cultural e coisa de intelectual orgânico a serviço de um partido. O papel do artista, se não é candidato, é o da busca da transcendência, essa sim que melhora a fundo a vida de seus fãs.

 

Deles e de suas obras maravilhosas, quero suas motivações internas, suas influências, suas inseguranças, seus métodos. O que fazem e como fazem, que engenharia infernal obram dentro de seus ofícios para arrebatar plateias com muito mais competência e capacidade de transformação, subliminarmente, do que um Lula ou um Bolsonaro.

 

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