Quinhentas mil mortes é daqueles símbolos vigorosos para denunciar um estado de coisas, como, no caso, o descalabro do governo Bolsonaro no encaminhamento da pandemia de COVID.
Jornalistas adoram números, tanto quanto possível redondos. São aqueles marcos que dão a esses rascunhadores da história a ilusão de estarem escrevendo a própria.
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Novo ridículo é patrulhar ideologicamente quem está quieto no seu canto Exército não poderia punir quem mandou Pazuello transgredir o regulamentoDe qual senador da CPI da Pandemia você compraria um carro usado?Bolsonaro escolhe pior das alternativas para calar denúncia da CovaxinDesespero de Bolsonaro pode ter relação com compra suspeita da CovaxinPorque outra grande propensão humana é medir por números a dimensão desses sofrimentos coletivos na mesma proporção em que editam o passado para punir o culpado por elas, como já escrevi neste artigo sobre determinismo retroativo.
Por serem suficientemente fortes, tendem a desestimular o esforço para checar se são verdadeiros e em que medida eles podem ser tributados na conta do culpado que se quer eleger.
Era previsível que o marco fosse uma bomba vistosa para resumir os crimes de Bolsonaro, mesmo que seja impossível matemática e materialmente imputar-lhe o número todo, quase todo ou qualquer um coletivo, diga-se.
Melhor prova da impossibilidade é a variação dos números que lhe creditam por ter sido leniente na compra das vacinas, colocados por cientistas de respeito (não políticos, que sempre chutam mesmo). De 13 mil e os 95 mil, como carimbou o professor da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal.
De todas as conjecturas, a mais consistente tenta sumarizar as que poderiam ser evitadas entre a primeira dose aplicada no mundo, em 6 de dezembro, e a primeira no Brasil, em 20 de janeiro.
Num cálculo de jornalista doido para fechar sua pauta, alguns dos cientistas cravaram no início entre 13 mil e 25 mil, ignorando outro número, também grande, de variáveis.
A começar de que, independentemente das dissimulações de Bolsonaro, é impossível calcular quantas vacinas o governo brasileiro teria tido à disposição em 6 de dezembro e se a Anvisa teria agido a tempo para aprová-la no território nacional, o que só ocorreria em janeiro.
Jornalista da velha guarda, fui e ainda sou refém da tentação de cavar um número para fazer um lead impactante. Mas sempre tive restrições a marcos redondos, como estou tendo agora, e preferi os quebrados, a partir de uma lição básica, a do Bombril.
Se a propaganda dissesse que Bombril tem mil utilidades, seria uma frase feita de vendedor bobo, mais uma, aplicável a qualquer produto. Quando se diz que tem 1.001, estimula alguma reflexão.
Dizer que "242 pessoas morreram no incêndio da boate Kiss" é mais forte que escrever 300 ou 400. Ou "977 perderam a vida nos desabamentos da região serrana do Rio" é melhor que 1.000 ou "quase mil" ou "cerca de mil", como em greral se escreve.
Abri meu primeiro texto nesta coluna rememorando uma das fotos mais icônicas do nosso tempo, a da criança morta numa praia da Turquia que chamou atenção do mundo, como nenhum outro dado, para a tragédia migratória na Europa.
Donde especulo que um número consistente e comprovado contra Bolsonaro teria mais credibilidade que os 500 mil. Que, em certo aspecto, funciona como se dissesse que bombril tem mil utilidades. Ou "Bolsonaro matou muita gente".
Bastaria um, uma só pessoa que comprovadamente tenha morrido em decorrência de falta de vacina. Por não ter tomado antes do 20 de janeiro ou ter sido induzida a não tomar por seu negacionismo e seu desestímulo a uso de máscara e distanciamento.
Tem vários exemplos mal explorados na imprensa. Bastava pegar um mais vigoroso, um só dos tantos que entram como estatística no noticiário. Uma bolsonarista saudável de qualquer idade.
Mas que se fizesse uma anamnese profunda, de suas condutas e condições físicas e psicológicas. Considerados sua história, suas comorbidades, suas relações e seus cuidados, considerando-se tudo que a Ciência sabe ou deixa de saber sobre o coronavírus, a vacina a teria salvo de fato?
Como tudo nesses tempos confusos e sonoramente poluídos de algaravia, um só caso, tratado com ética e profundidade de cientista ético, faria toda a diferença.
Aí, se poderia escrever: "Falta de vacina de Bolsonaro matou fulano de tal".