Bolsonaro colocou seus tanques nas ruas na semana seguinte em que o governador Romeu Zema pôs no ar dois vídeos de intenções semelhantes. De gosto e oportunidade discutíveis tanto quanto, mas de objetivos e resultados eleitorais equivalentes.
No primeiro, lava a própria louça numa sessão de autoajuda sobre independência doméstica, como pretexto para propagandear sua opção por morar em apartamento próprio, abrindo mãos das mordomias de palácio com seus carros e aviões.
No segundo, faz o próprio saque numa agência bancária, sem pretexto algum para divulgar o cumprimento da promessa de só receber o próprio vencimento depois de ter cumprido a outra, de colocar a remuneração do funcionalismo em dia.
São duas peças de alto teor demagógico, pelo que escondem sobre a vida real de um governador e suas diferenças em relação a um cidadão comum que bate ponto, abre a própria porta.
É fácil lavar louça por hobby de automotivação quando não se tem jornada dupla, às vezes tripla, entre quatro ônibus para ir e chegar em casa, e nenhuma autonomia sobre a própria jornada.
Como a dona de casa que gostaria de ter tempo para se dedicar ao casamento e não à pia, pode ser que esteja contando/apregoando uma disponibilidade que não tem ou, tendo, deveria ser melhor aproveitada nas funções para as quais foi eleito.
Na minha longa vivência com os políticos e suas jornadas contínuas sem hora final, considerando que só têm quatro anos para mostrarem a que vieram, nunca vi um que tivesse tempo de lavar louça, mesmo que quisesse.
Para isso é que o sistema democrático criou estruturas técnicas e operacionais de apoio nos palácios e gabinetes, assim como a indústria de eletrodomésticos as máquinas de lavar.
A julgar pelos vídeos, Zema sugere ter de sobra parte do dia que dedica a tarefas domésticas, como lavar louça e ir ao banco, onde sua passagem por ali parece tão normal que sequer provoca surpresa ou aglomeração.
Como um cidadão comum, no nível do irrelevante, que ignora, desconhece ou rejeita as modernas plataformas online bancárias, tira senha e aguarda sua vez, sem que seja socorrido, paparicado e priorizado.
Diferente do que ocorreria no caso de qualquer governador que entrasse em horário útil numa agência bancária, não fosse o tom de encenação montada em que, se percebi bem, só falta a maquiagem.
Se funciona do ponto de vista de marketing eleitoral, é outra história.
Pelo que percebo à minha volta, dos tantos amigos que os receberam em seus WhatsApp e dos comentários em postagem na minha página no Facebook, a encenação foi aprovada ou pelo menos ignorada como problema.
Prevaleceu a ideia e o zumbido sobre o conteúdo, sem suas eventuais contradições.
É de fato elogiável que tenha zerado as despesas com mordomias para dar exemplo de economia e conseguido colocar as contas em dia diante da barafunda fiscal que recebeu de Fernando Pimentel, que parcelava até a terceira parcela dos salários.
Garantiu desde o primeiro mês pelo menos o cumprimento das datas das parcelas, depois reduzidas para duas e agora uma, ao mesmo tempo que foi quitando o 13º e os repasses constitucionais em atraso dos munícípios, duas heranças perversas da incúria do antecessor.
Foi o sinal mais contundente de sua competência gestora, em se considerando que conseguiu estancar desde a primeira hora o acelerado processo de degradação das contas do Estado, a ponto do ingovernável. Operou com sagacidade a mesma conjuntura econômica que servia de desculpa ao ex-governador para dar calote.
Ainda que irrelevante em relação ao custo operacional da máquina, o corte de mordomias foi simbólico para demonstrar sensibilidade especial com o estado do Estado e disposição política real de mudá-lo, de cortar coisas grandes por objetivos maiores.
O que o primeiro vídeo insinuou, o segundo completou. E não incomodou quanto à forma com que foi feito e compartilhado.
Da mesma forma que tenho dúvidas de que a grande maioria da população tenha sofrido com os tanques de Bolsonaro, como fez crer a inteligência interpretativa da imprensa, nos sites e canais de respeito na internet.
Porque tudo mudou com o advento das redes sociais e as estratégias de políticos e governos de bombardeá-las com jatos intensos, contínuos e em larga escala de provocação, no que os americanos chamam de firehosing, de mangueira de incêndio.
Em que o zumbido e o conflito criados são mais importantes que o fato, que nem precisa ser verdadeiro.
Para essa grande maioria bombardeada, que sente mais que interpreta porque não precisa inflar manchetes e cliques, os vídeos de Zema e os tanques de Bolsonaro obedecem um mesmo ritual, mais um, que se vai esgotar em 48 horas, como se esgotaram, depois de intensa algaravia.
Políticos, jornalistas e celebridades entopem as timelines em hashtags de guerra, rádios passam o dia fazendo transmissões ao vivo ou entrevistando políticos e especialistas, os jornais da noite alinhavam as suspeitas com mais algumas opiniões dos suspeitos de sempre, os memes explodem.
Até a tarde do dia seguinte, quando restam poucos políticos ou especialistas a ouvir, a criatividade dos memes já se esgotou, a repetição nas timelines e nos grupos de WhatsApp já provoca certo enfaro e o balanço noturno das TVs sobre o fiasco ou o sucesso da empreitada governista é visto como falta de assunto que só atrasa o início da novela.
Bolsonaro sabe disso, consciente ou intuitivamente, porque aprendeu a manejar a pressão da mangueira com Donald Trump, que governava no Twitter quase 24 horas diárias.
Como escrevi aqui na semana passada, como ele, Bolsonaro sempre precisou de uma bandeira para colocar fogo no circo, que foi substituindo a cada vez que a anterior se esgotava.
A mais recente foi a do voto impresso, que só o preocupou 26 anos depois da invenção das urnas eletrônicas, quando todas as outras - liberalismo, combate à corrupção e ao fisiologismo, porte de armas e etc - tinham sido queimadas.
Minha certeza hoje é de que não tem qualquer propósito ou objetivo consciente sobre qualquer coisa. Seu programa de governo é descobrir a próxima bandeira a levantar para provocar os baixos instintos da sociedade e se colocar em evidência até as próximas eleições.
Como Trump, que por sua vez foi o aluno mais aplicado de Steve Bannon.
O gênio por trás da arte de manipulação dos algoritmos das mídias sociais provocou a mais radical revolução de manipulação do jogo político de que temos conhecimento, a partir do uso diabólico de dados do Facebook que virou escândalo mundial.
Bannon aprendeu com as comunidades violentas de jogo eletrônicos a arte de massacrar o adversário, criar fidelidades caninas e provocar o zumbido onde tudo se iguala e se confunde.
É uma avalanche de firehosings a serviço de inocular a dúvida e construir uma realidade paralela onde o zumbido conflitoso vira matéria mais palpável que o objeto em discussão.
Para saber do que estou falando, recomendo o pequeno grande Os Engenheiros do Caos, do italiano Giuliano da Empoli. Sobre o que há de engenharia e engenheiros brilhantes como Bannon na mistura de discursos de ódio, teorias conspiratórias e algoritmo na revolução populista que deu vitória ao Brexit, a Trump e a várias candidaturas de extrema direita pelo mundo.
Leia a minha resenha do livro: Engenharia do conflito faz revolução perigosa no marketing político
Se Bolsonaro é aluno disciplinado do método, aplicado no para-casa com filho Carlos também aluno de Bannon, Romeu Zema é seu discípulo promissor, que ainda vai chegar ao mesmo nível de excelência.
Não à toa, não custa lembrar, têm assessores de marketing da mesma idade, com as mesmas ideias, a mesma disposição para a briga, o mesmo talento para a manipulação.
Vieram ambos de suas campanhas eleitorais onde, como é sabido no caso de Zema, a traição ao candidato do Novo e o apoio a Bolsonaro foram determinantes.
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