O pedido de impeachment de Alexandre de Moraes por Jair Bolsonaro teve dois efeitos colaterais imediatos:
- Calou a crítica de que pregava um golpe contra o Supremo.
- Expôs os problemas do inquérito das fake news tocado por Alexandre no STF.
Bolsonaro girou a chave, digamos assim. Trocou as provocações de arruaceiro que depunham contra ele mesmo por uma estratégia política com instrumentos que o chamado estado de direito lhe confere.
Ficou meio risível a oposição de sempre, sobretudo entre os deputados da CPI da Pandemia que põem fogo no circo todos os dias, acusá-lo de estar atentando contra a "necessária harmonia entre os poderes".
A iniciativa foi entendida como fora dos padrões civilizados que Brasília avoca quando lhe convém, mas é, antes de tudo, legal. Ao Senado, compete aceitar ou, como é quase certo que fará, rejeitar.
O equilibrista Rodrigo Pacheco só terá que explicar e justificar também o destino dos outros 18 pedidos semelhantes protocolados este ano contra, além de Alexandre, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Edson Fachin e Cármen Lúcia.
À acusação de que está de novo envenenando o país para esquentar a militância, se contrapõe porém a evidência de que Alexandre de Moraes vinha mesmo passando dos limites.
Como defendi no artigo da semana passada, o inquérito das fake news foi criado em boa hora por Dias Toffoli por razões que se justificavam plenamente naquele março fatídico de 2019:
- Tinha algum embasamento, que era a defesa do Supremo diante de ameaças reais contra seus membros, que o regimento interno prevê.
- A omissão absoluta da Procuradoria-Geral, da então Raquel Dodge, sobre os ataques, que eram públicos e notórios.
- E principalmente a máquina de ódio violenta e criminosa dos seguidores do governo nas redes sociais, contra pessoas e instituições.
Mas foi degringolando para punir delito de opinião e prender sem flagrante, como admitiu o honorífico Yves Gandra Martins no caso de Roberto Jefferson. Numa extrapolação das razões iniciais, baseadas no Regimento Interno do STF, e tão somente nele, para garantir a integridade física dos ministros.
Ao invés de resguardar a segurança dentro de seu território, como explicita o artigo 43, foi ao terreno das redes sociais mandar buscar, calar e prender. Sem participação do Ministério Público, sem individualizar culpas, sigilosamente, sem direito de defesa.
Não é só que investigue, acuse e julgue a si mesmo, mas que se utilize do conceito de fake news como crime ainda não previsto em nenhum lugar do chamado ordenamento jurídico.
Transportando para a nossa realidade, é como se um desembargador do nosso TJ ou um deputado da Assembleia mineira começasse a interpretar que algumas postagens fora de suas dependências atentassem contra a integridade de seus colegas e mandasse sua polícia interna ir lá e prender.
O máximo do excesso, que entornou o caldo, foi enquadrar o próprio presidente da República pela live em que sugeriu fraudes nas urnas eleitorais em defesa do voto impresso. Onde não era possível interpretar que estivesse atentando contra a segurança dos ministros, como quer o artigo 43 do tal regimento, e que estivesse cometendo o crime de fake news. ainda nem configurado.
(Como bem lembrou o grande José Roberto Guzzo em mais de um artigo nos jornais, a expressão "fake news" nem sequer tem correspondente em português para adornar nosso cipoal de leis para tudo.)
Num sinal de que pode estar mesmo errado ou fazendo autocrítica, Alexandre fez com que a Procuradoria-Geral tomasse a iniciativa das operações de busca e apreensão da última sexta-feira, contra Sérgio Reis e companhia, que acabou por azedar o fígado do presidente.
De fato perigosas e atentatórias ao regime democrático, configuração de uma quadrilha predisposta a derrubar as instituições, não precisou de prisões. Melhor atestado de que havia outros caminhos dentro da lei para enfrentar os arruaceiros anteriores.
Àquela altura e considerando-se enfim a participação do seu indicado Augusto Aras nas ações, o pedido de impeachment como revanche e contra a pessoa errada não parecia mais fazer sentido.
Quando mais que não é muito simples enquadrar ministros por extrapolação de interpretação. Quisesse mesmo quebrar a espinha do Supremo, Bolsonaro deveria se basear em desvios fora de autos, de que já houve indícios bem noticiados: penduricalhos salariais além do teto constitucional, votos suspeitos, tráfico de influência.
Mas como se trata de Bolsonaro, que tem uma fama a zelar com sua tropa nas redes sociais, não iria recuar do que já havia prometido. Até onde percebo, seu aceno no meio da semana, de que aceitaria conversar com seus dois principais desafetos no STF, Moraes e Luís Barroso, caiu muito mal nas suas redes.
E nem perder um gancho desses para esquentar a mobilização a seu favor no 7 de setembro, em que está empenhado. Um pedido de impeachment desse porte, seguido da promessa de outro na geladeira contra Luís Barroso, é uma vitrine poderosa para seus intentos.
Pelo menos tem a boa desculpa de que usa os recursos disponíveis da lei — havia questionado judicialmente na véspera o malfadado artigo 43 — e espera-se que aceite sua mão pesada em caso de arruaça contra o regime, nas manifestações no Planalto ou na Paulista.
Não me parece ainda o fim do mundo. Não acho ruim que o STF passe civilizadamente pelo escrutínio público. Que o Senado faça o que deve ser feito. Que Alexandre e Barroso se defendam. E, se acharem que Bolsonaro também está passando da hora de um impeachment, que o peçam.
Se se quer um regime de normalidade democrática, não é preciso ficar buscando entendimento impossível com cara de conchavo, como tentou Rodrigo Pacheco. Que todos cumpram a lei.
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