Quando
La Casa de Papel provocou comoção mundial
, escrevi em algum lugar que o mundo era socialista, todos éramos socialistas.
A série catalisou afinidades profundas no desejo reprimido de tirar dos ricos para dar aos pobres, no grupo de jovens Robin Hoods modernos que tomava a Casa da Moeda espanhola para imprimir o dinheiro necessário às suas utopias.
E me ponho a pensar de novo no poder de fábulas simplistas como essa para apertar os botões mais profundos do ódio visceral ao capitalismo. Na mesma proporção que teve a do presidente para despertar os instintos mais básicos nacionais contra o liberalismo.
A série sul coreana isola 456 endividados sem saída e ameaçados de morte por seus agiotas numa gincana mortal de disputas em brincadeiras infantis ao modo
Jogos Vorazes
, ao preço de ficarem milionários ou serem fuzilados.
A violência brutal, numa sangueira de Tarantino sem o deboche, é proposital para fazer a apologia de que a sobrevivência lá fora, no cotidiano de competição e traições do capitalismo, não é diferente.
A certa altura, os miseráveis preferem voltar à arena, para o risco de morte, a viverem o tormento de suas rotinas de pressão e desigualdades, numa Coreia do Sul em crise, apesar de ter se transformado numa potência mundial em poucas décadas.
— Aqui pelo menos tenho uma chance. Mas e lá fora? Não tenho nada. Prefiro ficar e morrer tentando a morrer lá fora como um cachorro.
A ideia de catarse orgasmática contra a mixórdia do capitalismo opressor está na base do discurso quase unânime contra a ideia aparentemente óbvia de se
negar absorventes para meninas de famílias pobres
que perdem aula por menstruação ou se protegem com chumaços de jornal ou miolos de pão.
Num contexto desse, de tal comoção intelectual quanto uma estreia retumbante na Netflix, é quase risco de morte especular se isso é função de Estado na gincana terrível das redes sociais.
Reinaldo Azevedo, uma de minhas bússolas de raciocínio lógico, coloriu com sua sofisticação intelectual intimidante a prosódia mais comum da insensibilidade governamental misturada à hipocrisia num governo que teria dinheiro de sobra para outras bobagens, como motociatas, cartão corporativo ou fundo eleitoral.
— Eles não se importam — filosofou ao se referir a um tipo de elite que só vê os próprios botões e a uma visão antiquada de liberalismo, que perdeu seu sentido já no século passado.
Nas análises mais generosas e menos filosóficas de comentaristas respeitados, foi um caso apenas de estupidez política.
Tendo à filosofia, gosto da análise consequencialista da política, ando sem medo da morte nas redes sociais, não sou maluco de defender a estupidez de negar absorvente para meninas pobres num país de desigualdades medievais e acho que o capitalismo é mesmo uma vida porca.
Mas não resisto ao risco de ser fuzilado ao especular se é o caso de o Estado dar tudo mesmo e se é possível ainda discutir ideias no país do bolsa família. Entre as quais, a que o brilhantismo de Reinaldo evitou: é possível considerar pelo menos a ilusão de chegarmos algum dia a um capitalismo de mercado no Brasil?
Que chances tem, na terra eterna do jeca tatu, o liberalismo da livre iniciativa, da liberdade de competição e do Estado mínimo sem Brasília, que Bolsonaro põe em discussão, por cálculo ou estupidez, ao defender decisões heterodoxas como uso de armas e fim da multa por transporte de criança sem cadeirinha?
Se é preciso dar tudo mesmo, de feijão a absorventes, de arroz a anticoncepcionais, de óleo a diazepan, de sabão a absorventes e desodorantes, a que que ponto suportamos?
Outra questão que me parece estimulante, a partir do que me sugeriu a decisão de Bolsonaro, o cinema coreano e o artigo de Reinaldo, é se é possível construir um país liberal e capitalista nesses trópicos, onde as novidades intelectuais do mundo chegam com 30 anos de atraso e queremos acabar com o capitalismo antes de tê-lo.
Verdade que, como ele comenta, o liberalismo esteja ultrapassado e tenha caído de moda aqui, como quase tudo. Antes de sequer termos sabido do que se tratava o tal Consenso de Washington, do estado mínimo. Que morreu por aqui no final dos 90 antes de tomarmos conhecimento de sua existência e de rir ao ouvir o PT chamar Fernando Henrique Cardoso de neoliberal.
Muito antes da pandemia do coronavírus, que exacerbou a interferência do Estado em tudo, da comida e os remédios ao direito de ir e vir, somos uma sociedade cartorial, monopolizada, de economia fascista, aquela que não anda sem governo, dependente de seus insumos, seus projetos, seu dinheiro via BNDES, subsídios e desonerações.
Quem não depende do poder público está dentro dele, gozando de seus bons salários e sua estabilidade, ou tentando entrar nele. Ou tomar dinheiro dele para seus negócios, como os políticos e os empresários.
Nossos jovens querem mais um concurso público a encarar patrão insensível, de resto brucutu mesmo, ou a produzir qualquer coisa. Se alguma competição há, séria, é dentro das organizações públicas para galgar cargos, numa disputa quase a Round 6.
O sistema darwinista de competição que deu aos EUA o domínio bélico, financeiro e tecnológico do mundo — com suas plataformas estupendas do tipo Google, Facebook, Apple, Amazon, Disney e tantos etceteras — só existe dentro dos monopólios privados ou na arena sem risco do serviço público, em que se briga e se trai por aumentos e cargos.
Até porque conheço bem o serviço público e seu grau de cumplicidade com o poder político no Executivo e no Judiciário — corporativistas, perdulários, ineficientes e avessos ao mérito — desde sempre alimentei ilusões de uma saída pelo liberalismo, base do empuxo de todos os países que dominaram outros em direção a suas potencialidades.
A partir de um dos meus livros de cabeceira por um bom tempo,
A Pobreza e a Riqueza das Nações
, do professor de Harvard David Landes, sobre por que alguns países são ricos e outros tão pobres. Elabora como que a cultura e o empreendimento individual em sociedades de liberdade para competir produziu milagres econômicos desde o mundo árabe até o fenômeno dos países asiáticos como a Coreia do Sul.
Outra referência foi Os Magnatas, história de quatro baluartes do petróleo, da mineração, dos transportes e das finanças (Andrew Carnegie, John Rockefeller, Jay Goudl e J.P.Morgan) que mudaram o rosto dos EUA no final do século XIX, quando construíram mais ferrovias do que necessário para escoar seus produtos e se financiaram sem pedir um centavo ao governo. (
Saiba mais sobre os dois livros aqui
.)
No Brasil, depois de dois únicos e malucos presidentes de direita real, Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello, Jair Bolsonaro foi a mais consistente das ilusões de que se poderia caminhar para um país de livrre iniciativa, liberdade individual para empreender e mínima presença do Estado.
— Vamos fazer a nossa revolução liberal,depois de 30 anos de governos social-democratas que afundaram o país — dissera Paulo Guedes ao arrebanhar luminares do liberalismo para sua cruzada brancaleônica que foi fazendo fuzilados pelo caminho, como em Round 6.
Leia meu artigo:
Fracasso de Guedes é também o de um projeto de país impossível
Havia ideia, candidato, um projeto consequente e, pela primeria vez, uma militância de direita, no caldo das revoluções de Facebook pelo mundo, os protestos do Passe Livre em 2013 — quando se tomou do PT o monopólio das ruas — e os cursos e pregações de Olavo de Carvalho.
Só que, como se provou, era tudo engodo ou inviável. Não só pelo absoluto despreparo do candidato vitorioso para tocar uma empreitada desse tamanho, mas pela inviabilidade mesmo de um país de vocação africana e paternalista, que tudo espera de um governo paizão.
Que lhe dê de feijão a aborventes, enquanto não espera o próximo concurso público, a próxima licitação ou a próxima conversa com um político para enfiar jabutis em projetos e decretos. Que em geral pioram a maioria das reformas que entram no Congresso, no espírito desde a Constituição de 1988 de que legislar é criar benefícios.
De forma que esse sub capitalismo de fancaria não foi destino e nem tem perspectiva. E saibam os preocupados com a desigualdade, que nosso excesso de Estado mais alarga o fosso entre pobres e os que mamam no poder. Só fortalece a turma do topo da pirâmide enquanto se distribui absorventes, anticoncepcionais e diazepan para a base.
Claro que nossa mixórdia como humanidade vai além do capitalismo de empresas. Tem a ver, entre outras coisas, com o consumismo desenfreado que é sua forma de alimentação e razão de ser. Mudá-lo requer mudança radical que não está apenas na alçada dos políticos.
Tem a ver com uma revolução moral, ética e de costumes, que restabelecesse o poder aglutinador, moralizador e destruído da família, da religião e da alta cultura, sem perspectiva nas poucas próximas décadas que me restam sobre a terra. Ou enquanto não se descobrir outra forma de alimentar uma população que não cabe no espaço físico que lhe foi destinado.
Até lá, num contexto desses, não dá para negar absorventes, falar em capitalismo ou liberalismo e pouca diferença faz a eleição de qualquer dos candidatos a presidente disponíveis no balcão da campanha eleitoral.
Qualquer deles vai ter que se dobrar à sina com que Paulo Guedes e outros lunáticos anteriores trombaram sem sucesso: distribuir dinheiro e benefícios para as elites do empresariado, o estamento burocrático e os políticos, em meio a algumas esmolas institucionais para a indústria cultural e os pobres.
Respeitarei quem defender esse modelo com bons argumentos, mas está claro que não se sustenta, como não se sustentou.
Lula, que o aprofundou com enorme competência para distribuir dinheiro público a todos os níveis da pirâmide, sem se preocupar com a receita, jogou uma bomba relógio no colo de sua sucessora Dilma Rousseff, que deu no que deu. Como qualquer um que for eleito jogará no colo de quem lhe suceder, se insistir nele.
E vamos continuar distribuindo, de feijão a absorventes, sabonetes e desodorantes, pelo resto da vida.
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