Há pouco tempo, a seu jeito de dar uma no cravo e outra na ferradura, Ciro Gomes disse que Lula era um ser humano alguns graus melhor do que Jair Bolsonaro.
Não calculou o risco de ser comparado aos dois ou pelo menos a Lula. Seria um ser humano melhor do que o petista? Minha primeira impressão é que não.
Fosse me dada a sorte ou o azar de sentar numa mesa de bar com os três, abstraindo toda a história e as crenças políticas de cada um, não teria dúvida de que Lula é melhor.
É sabidamente afetuoso, generoso, todo interlocução, cumplicidade e lealdade com os amigos, bom de uma cachacinha, alguns graus acima da agressividade intempestiva de Ciro, capaz de dar tapas na mesa e derrubar garrafas.
Melhor que Bolsonaro, o meninão que fala mais do que ouve, capaz de demonstrações de afeto exageradas — aqueles abraços de bêbado — e de ódio de igual tamanho. Com o grave defeito de não beber, que deve torná-lo uma companhia ainda mais desagradável.
Minha opinião não mudaria em nada sobre a vantagem de Lula, se chegasse na roda João Doria com sua autenticidade de manequim de loja. Ou Sergio Moro, calado e frio com um bom garçom. Os dois devem beber martini. Segurando a taça com a ponta dos dedos, pernosticamente.
Eduardo Leite é que talvez pudesse se aproximar de Lula, com seu jeito afável de bom rapaz para se apresentar à família ou só para conversar de cotovelo apoiado, olho no olho. Mas aquém das manhas do velho caudilho para ouvir, se fazer ouvir e só falar o que o outro quer ouvir.
Politicamente, porém, Lula não está entre minhas predileções. Resumo por quê no final, depois de demonstrar porque vejo nele, para além do cara legal, três personalidades inconciliáveis que operam contra sua credibilidade.
Primeira, a melhor delas, é que se trata de um sujeito brilhante, um instinto impressionante para perceber o espírito do tempo e encantar plateias em torno de ideias progressistas, lindas para consumo externo.
Arrasou numa impressionante entrevista de 14 minutos em Bruxelas, que resumiu melhor sua filosofia, seu projeto de governo e de vida, que a soma de todas as longas horas de palestras e coletivas pela Europa.
Está mais do que nunca afiado, redondo, capaz de resumir uma enciclopédia de ideias pertinentes, oportunas e atuais com senso histórico, geopolítico e conjuntural. E moderno, pronto para falar com pertinência sobre apps, algoritmos e seus riscos para a democracia.
Resumiu em torno de três eixos — desigualdade, ecologia sustentável e empregabilidade — um projeto para o mundo, com uma pitada de marketing sobre sua capacidade de fazer, outra de networking sobre suas relações com lideranças mundiais e uma terceira disso tudo em relação a suas crenças pessoais.
A apresentadora portuguesa, da mesma esquerda europeia que se desmancha por ele, independente do que diga, estava visivelmente sensibilizada, para dizer o mínimo que não pareça machista.
Esse Lula brilhante, articulado e antenado, apresentado na Europa como um estadista que tem solução para a humanidade, mais candidato a secretário geral da ONU do que a presidente do Brasil, não se concilia, entretanto, com o segundo.
Que é um pragmático que sabe muito bem diferenciar discurso e prática. E pratica o que é possível na geopolítica brasileira, um capitalismo de estado acolitado com uma das piores classes políticas do mundo, onde o que se tem a fazer — e fez — é despejar dinheiro público nas elites e dar algumas esmolas para os pobres.
Também incha a máquina pública, cria subsídios e benefícios vários para todas as camadas da população, dentro e fora do serviço público, amplia a distribuição de verbas públicas para cooptar maioria no Congresso. Faz acordo com o diabo e defende privilégios para determinadas classes e minorias.
Acaba contribuindo para o contrário do que prega e em favor das elites que em geral condena em frases para enrolar a plateia: a desigualdade, a ecologia empresarial sustentada com verbas do BNDES e um tipo de empreguismo produzido direta ou indiretamente com dinheiro público.
Os dois Lulas, o idealista e o pragmático, não se conciliam evidentemente com o terceiro, que mente tão deslavadamente, "mente de maneira tão pungente / que acho que mente sinceramente", como no no verso de Affonso Romano de Sant'Anna.
Chega a se esquecer de onde está, da importância da plateia e de seu lugar histórico. Desce à manipulação rastaquera dos fatos, num desrespeito impressionante, não só a plateias alheias, mas à sua própria, a militância pronta para aplaudir até seus arrotos.
Pois esse estadista vendido como encarnação ONU de solução mundial usou o segundo maior palanque do mundo para dizer o que só os petistas acreditam a respeito dos processos da Lava Jato: é inocente, não sabe porque foi condenado e que o juiz o condenou politicamente porque queria ser ministro de Jair Bolsonaro.
Quando entra nessa vibe, perde todo o sentido de contradição. Como dizer que Sergio Moro o condenou na expectativa de um cargo no novo governo, se, como ele mesmo diz em uma das palestras, ninguém, jamais, em tempo algum, poderia imaginar que o Brasil poderia eleger "um sujeito como Jair Bolsonaro"?
Esse terceiro Lula altamente dissimulado, que mente despudoradamente, nacional/mente, internacional/mente, é o mesmo que fez vista grossa para a corrupção, deixou roubar, induziu seus companheiros a greves e invasões, defendeu/defende ditaduras, põs/põe a peãozada na rua para negociar por cima, desde sempre.
É o pragmático em excesso, mais para coronel e caudilho que democrata, ao ponto em que os fins justificam os meios, a tomada e a manutenção do poder se sobrepõem à preocupação com desvios éticos eventuais e passageiros.
Isso é terrivelmente Lula, uma mistura sincera e talvez inconsciente, que vai do idealista ao caudilho, a "metamorfose ambulante" que se vende com competência, encantando, manipulando ou enganando plateias mundo afora. Agente ou vítima de suas próprias contradições.
Veja o vídeo: Três Lulas na Europa
Eu gosto do primeiro, não me importo com o segundo, porque sei de nossa conjuntura, e abomino o terceiro. Não a ponto de ódio, porque já andei demais para entender a metafísica da política e ser moralista.
E não é por nenhum das três que nunca tive a honra de votar nele, embora tivesse votado em amigos petistas. Como a maioria do povo brasileiro, voto por simpatia em cargos que não julgo determinantes. Se votasse por empatia para o posto da primeira cadeira do país, votaria no primeiro Lula.
Consideraria que não deve ser totalmente ruim para o país um companheiro bom de copo e de conversa. E se aparecer alguém com seus mesmos defeitos políticos, é possível que os atributos pessoais revelados no buteco pesem a seu favor.
Minha restrição é com sua filosofia política mesmo, seu socialismo inconsciente e esse progressismo que para mim é uma forma de dizer que as elites conservadoras são reacionárias. É sua inspiração primeira, cristalizada em camadas de circunstâncias, atrás da qual arrastou/arrasta legiões de crédulos.
Desde a adolescência, por mecanismos ou influências que ainda não entendo totalmente, sempre tive restrições severas a que se pudesse forçar a igualdade por meio do Estado. E duvidei do sucesso de qualquer tentação que tirasse a liberdade natural do homem de lutar e competir para sobreviver e produzir coisas.
Imaginava uma grande área que fosse dividida igualmente por 1 mil pessoas. Tinha certeza de que, em pouco tempo, sem controle do Estado, um venderia a sua parte, outro trocaria a sua por uma bicicleta ou um rádio velho, um terceiro abandonaria, um ou outro compraria a parte da maioria e estabeleceria um monopólio.
Como o tempo e os excessos, como tem sido desde sempre, passando pela era dos descobrimentos e da revolução industrial até a era da informação, o excesso seria corrigido por outros atores ou pela mão, no máximo fiscalizadora, do Estado.
Com pretensão estatal de controle e equilíbrio, seria pior. Acomodação, improdutividade, desânimo, paralisia, parasitismo, subdesenvolvimento. O Estado querendo empurrar uma carroça em que ninguém está empenhado e feliz.
Lula — estadista, pragmático ou politiqueiro — e seus seguidores acreditam piamente que a segunda solução é a melhor, contra todas as evidências de que não deu certo em lugar algum. É o melhor que eles podem oferecer ao mundo.