Na última semana, pelos menos quatro casos emblemáticos sugeriram que as mulheres propriamente ditas começaram a reagir ao ativismo identitário que pretende expulsá-las como categoria sexual da face da Terra.
A poderosa autora da saga Harry Potter, J. K. Rowling, protestou contra a decisão da polícia britânica de identificar como mulher homens acusados de estupro vestidos de uma, desde que assim se identifiquem.
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Na Espanha, jornais vêm dando seguidos destaques aos protestos das feministas contra a nova legislação de não discriminação aos LGBT por desmantelar direitos históricos conquistados pelo movimento feminista, que pode ser bem exemplificado por outro movimento no Brasil.
O influente perfil gqfeminista, no Instagram, abriu um movimento de defesa de banheiros exclusivos para as mulheres a partir da decisão de um McDonalds de Bauru de criar banheiro único, "multigênero" ou "inclusivo", segundo a nomenclatura típica da militância.
As autoras apresentam longa e pertinente história das conquistas femininas desde o século XIX, que igualam o direito ao banheiro individual à conquista do direito de votar, para explicar como que o ativismo identitário vem solapando conquistas de mais de século:
— Negar a mulheres e meninas o direito a banheiros exclusivos é negar a história da luta feminista e o direito à segurança.
A onda reativa vem num ponto em que esse ativismo chegou a tal radicalização que parece perder a referência da racionalidade. Ao ponto de uma abstração de sentido sobre coisas reais por ativismo que beira o ridículo. Quando não a demência.
Remete a um caos muito parecido dos anos 80, quando o excesso de niilismo da geração anterior, em que nada parecia fazer sentido, produziu nas feministas a mesma sensação de risco. De que, levada ao limite, a abstração extinguiria as próprias categorias que pretendia defender.
O movimento feminino de viés tradicionalmente liberal, ativista pela igualdade política e econômica de homens e mulheres, começou a reagir à desconstrução teórica de todas as categorias pelo pós-modernismo influente e totalmente niilista de Michel Foucault, Jacques Derrida e sua turma.
Em que, entre tantas outras coisas, todos os arranjos consagrados da tradição, da família binária sobretudo, deveriam ser desconstruídos. Num foco obsessivo por linguagem e desconstrução dos discursos como fonte de poder e opressão da maioria branca hétero ocidental.
A movimentação fez surgir uma geração de feministas acadêmicas, incluindo negras, lésbicas e/ou imigrantes, que descobriu uma aplicação mais política e ativista do pós-modernismo, com o mesmo foco na desconstrução.
Que redundou na ideia de que sexo, gênero e sexualidade são construções sociais de cada um no seu quadrado e, por vários motivos que não vou expandir aqui, na multiplicação de sub-categorias oprimidas a partir da categoria "mulher”.
(Para os mais interessados, é indispensável e altamente enriquecedor ler Teorias Cínicas, de Helen Pluckrose e James Lindsay, que resenharei no futuro.)
A questão não era lutar mais só pela equivalência política e material dela, nos moldes do velho feminismo liberal — já morto e superado no início dos anos 2000 por esse novo ativismo puramente teórico —, mas pelos seus múltiplos desejos e necessidades, conforme sua posição social.
Tomava emprestado um conceito revolucionário de 1989, de uma das novas e mais influentes acadêmicas da Teoria Crítica da Raça, a americana negra Kimberlé Crenshaw. O da interseccionalidade, que estabelecia novas categorias femininas na denúncia que a mulher era dupla, tripla, quadruplamente ou mais outras formas oprimida.
É duplamente se for também negra, triplamente se for mulher, negra e gay. Quadruplamente se for mulher, negra, gay e latina… e por aí afora, quantas vezes for em sua variedade de condições.
Deixou famosa a sua comparação com um atropelamento na intercessão de um sinal de trânsito. Você pode ser atropelado por um, dois ou dez carros. A mulher negra, gay, pobre, latina, muçulmana e desempregada, por exemplo, seria atropelada por sete carros da opressão hétero branca cristã ocidental.
A desconstrução da categoria mulher era então reconstruída numa miríade de sub-categorias que levavam em conta raça, sexo, classe, sexualidade, identidade de gênero, religião, status de imigração, capacidade física, saúde mental, tamanho do corpo. Se a mulher do sinal ainda fosse gorda, seria atropelada pelo oitavo carro.
A Wikipedia resume bem como "o estudo de como identidades sociais sobrepostas ou interseccionadas, particularmente identidades minoritárias, se relacionam com sistemas e estruturas de opressão, dominação ou discriminação". Ampliada em vários outros estudos de várias outras publicações de acadêmicas influentes daí pra frente, no que hoje se conhece como Teoria Queer.
Chegou a tal diluição que o movimento gay, uma variante das variantes do ativismo de afirmação, exemplifica com sua sigla LGBTQIA+ que a cada dia precisa acrescentar uma letra para dar conta de novas variações.
E a um excesso que levou a novos tipos de conflito e opressão dentro das próprias subcategorias, produzindo defecções e, por sua vez, novas sub de sub-categorias. A própria Kimberlé admitiu, em 2017, que a multiplicação levou a divisionismo e até mesmo a cinismo.
Surgiu até uma expressão para designar confrontos internos, como trans-excludente, sigla de "trans-exclusionary radical feminist (TERF), criada em 2008 por uma — ao modo múltiplo de hoje — blogueira feminista radical cisgênero trans-inclusiva, Viv Smithe. Aplicada a feministas que têm sentimentos ou atitudes em tese transfóbicos contra trans ou legislação de equiparação, por exemplo. J. K. Rowling?
E deu nesse negócio de seres que menstruam e a reação natural das feministas de raiz, as que acreditam nos princípios liberais da igualdade de direitos, de liberdade e de oportunidades. Uma revisita à sua história de lutas que, pelo menos até os 80 do século passado, ajudou a acabar com muita discriminação e intolerância.
O pós-modernismo que Helen Plucrose e James Lindsay chamam de "aplicado", para produzir efeitos de ativismo, chegou ao paroxismo de desconstruir a linguagem e as categorias de tal forma até onte não há mais sexo, gênero ou raça. Só seres variados. Cada um com sua sentença.
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