Jornal Estado de Minas

RAMIRO BATISTA

Com nossos pequenos três poderes, vêm grandes irresponsabilidades

A grande frase que define o Homem Aranha e virou axioma político — "Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades" — deve ter sido criada pelo dilema do herói adolescente mais preocupado em se entender com a namorada do que em salvar o mundo. 





Em resolver seus problemas emocionais, que tomam boa parte de suas preocupações, enquanto tem que evitar que mais um prédio seja destruído ou um avião derrubado por seus antagonistas, ao preço de mais vidas inocentes.

Mal ou bem, ele vai resolvendo as duas coisas, empurrado para a prioridade de salvar a vizinhança ao invés de si próprio, apesar do fogo cerrado e injusto da imprensa encarnada pelo Clarim Diário, do odiento JJJ.

É quase um crime de lesa-literatura comparar Jair Bolsonaro com o heroizinho apaixonante, parte do patrimônio sentimental da humanidade, que volta a sacudir as plateias ao aparecer em três encarnações na última versão do cinema. 





Mas um bom devaneio em meio às desilusões que temperam as festas de fim de ano. Qual seja, o de que o presidente da República, de espírito sanguíneo tão adolescente quanto, virou a frase de ponta cabeça. E ajudou a destruir mais um pouco o país que deveria salvar por priorizar o namoro com seus interesses pessoais e paroquiais.

Nenhum presidente tinha diminuído tanto o cargo quanto ele. Por ignorar de propósito aquele mínimo de dignidade que os mesmo os piores ocupantes da cadeira entenderam como a liturgia do cargo, ilustrada pela frase famosa: "À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta".

Tomou posse levando o filho barbudo marmanjo na carona do Rolls Roice pomposo e fechou o ano dançando funk machista numa lancha. Entre uma coisa e outra, tirou e mandou tirar máscaras, fez piada de cunho sexual em cerimônias oficiais e cometeu o ato pornográfico explícito de condecorar a própria mulher com as três principais medalhas da nacionalidade, em apenas seis meses.





As Ordens do Mérito Rio Branco, Oswaldo Cruz e da Defesa, destinadas a personalidades de notória contribuição à Ciência, à Educação e à Cultura, foram conferidas por um capricho de adolescente para agradar a namorada enquanto o prédio do país desabava lá fora.

São símbolos de desenho animado reveladores de uma identidade pré-adolescente que, em termos macros, se traduziu na afronta a regras sociais mínimas de respeito aos outros poderes e instituições da sociedade, a jornalistas e a minorias, a celebridades, adversários e até aos mortos.

Concentrou-se no círculo familiar e no que este o influenciou como prioridade: derrubar desafetos no entorno palaciano, demonizar aliados no Congresso, plantar teorias da conspiração, espalhar infâmias e privilegiar os apoiadores eleitorais — empresários, evangélicos, militares. 





Até o seu governo, contabilizava-se alguns deslizes presidenciais raros pela dificuldade natural humana de conter a vaidade ou a pressão familiar pelo uso das regalias momentâneas do poder. Ou pela tentação de favorecer guetos que chegam a Brasília com o governante.

Uma carona a penetras no avião presidencial, o mergulho dos filhos na piscina da residência oficial, o recorte de uma estrela de flores vermelhas nos jardins tombados pelo patrimônio histórico. Mesmo Lula, quem mais tinha cedido a circunstâncias desse tipo, teve o pudor de não condecorar a mulher, premiada num ato do vice José Alencar.

Os favorecimentos paroquiais aos grupos em dívida de campanha, inerentes aos governos como os vilões nos quadrinhos, eram pelo menos disfarçados ou diluídos nas políticas de Estado. 

Ao empresário ou sindicalista amigo eram facilitados acessos, empréstimos, subsídios ou redução de multas e dívidas, mas sempre dentro de políticas comuns dos bancos públicos, dos órgãos de fiscalizacão ou de nova legislação.





Não há registro do desplante de desmontar órgãos de controle e, mais do que isso, assumir publicamente com nome e endereço que o fez para proteger, mais do que setores, apoiadores eleitorais conhecidos. 

Menos ainda ostentar tratamento diferenciado, despudorado, a categorias do afeto presidencial como a dos policiais em relação ao conjunto do funcionalismo público. Na contramão dos esforços de racionalização das contas previdenciárias e orçamentárias.

É uma cadeia de pequenos poderes em favor de pequenos grandes favores que deturpa toda a lógica do princípio de impessoalidade, legalidade, moralidade, transparência e eficiência da administração pública. Prioritários e obrigatórios para quem assume o principal posto da República, depois de jurar defendê-la com base na Constituição assentada no interesse universal acima de quaisquer outros, pessoais sobretudo. 





Mais grave, porém, é que ao diminuir o tamanho do cargo para seus interesses mais imediatos, perdeu condições políticas de influenciar e se contrapor como contrapeso de mesma potência e acabou reduzindo também a estatura dos outros.

Historicamente, o Executivo funcionou como um contrapeso como deve ser, contra as tentações de hegemonia dos outros dois. Primeiro, por imposição ditatorial alimentada na crença da vileza do poder civil. E depois, nos governos democráticos, pela negociação que desandou para a cooptação e, desta, para a corrupção propriamente dita.

Mas até Bolsonaro e apesar das prerrogativas em queda, o Palácio do Planalto ainda funcionava como o anteparo de certos limites que não podiam ser ultrapassados. Aquele mínimo de compostura a partir do qual todo mundo sai perdendo.





Alimentado por conversas e negociações, em que cada um dos poderes faz ver ao outro os seus excessos que podem se refletir na  desgraça dos três. Não vamos vender a mãe para distribuir emendas, senhor deputado. Não vamos soltar todo mundo ou acatar toda a liminar contra o Executivo só porque o presidente é antipático, senhor ministro.

Não se tem registro na história de período em que Congresso e a Suprema Corte estivessem tão avacalhados. Calados e subservientes, sim, pela força das baionetas das ditaduras de Vargas e dos militares, mas nunca tão ostensivamente militantes para defender e ampliar seus tentáculos por corporativismo, vaidade ou sub interesses. 

O STF teve um ano vergonhoso de anulação de tudo o que a sociedade aprovou na Lava Jato, em intromissão quase cotidiana na economia interna dos outros poderes, em arbitrariedades de prisão sem flagrante no processo das fakenews, em liminares em cachoeira para contestar o Executivo.





Num ativismo de que o presidente Luís Fux não teve vergonha de ostentar no seu discurso de final de ano:

— Não é demais lembrar, todavia, que esta Suprema Corte seguirá sempre atenta às necessidades do Brasil neste próximo ano, estando pronta para agir e para reagir quando preciso for, sempre respeitando e fazendo respeitar as leis e a Constituição.

Do outro lado da praça, o Senado derrubou propostas do Executivo sem ler e a Câmara desceu mais um pouco. Só aprovou o que quis, desidratou propostas, inviabilizou reformas, esvaziou projetos moralizadores e ampliou seu poder na distribuição de verbas por indicação dos próprios deputados.

A ponto de transformar seu presidente Arthur Lira num tipo de imperador que recebe deputados, despacha e autoriza destinação de verbas em volume maior do que autorizado pelos ministérios, numa inversão absoluta de responsabilidades.





Bolsonaro chega ao final de seu terceiro ano de mandato tão desidratado, que qualquer proposta emitida pelo Palácio é combatida pelo Congresso, desmontada por provocação ao STF e desmoralizada pela imprensa, antes de uma reflexão racional sobre seus méritos.

Um exemplo retumbante deste ano foi a MP de regulamentação contra os abusos de censura das plataformas de mídias digitais, que a escalada do Jornal Nacional abateu tonitruante, ecoando o ritual de pressão que começa nos políticos e acaba no Supremo. Devolvida num efeito midiático pelo presidente Rodrigo Pacheco, está hoje na boca e nas pretensões de todo o mundo político, a começar de Lula.

Outra que fechou o ano, menos retumbante porque já faz parte da paisagem, foi a de adiar até melhor estudo a vacinação de crianças na faixa de 5 a 11 anos. A decisão do governo desencadeou o mesmo ritual já monótono, tedioso e um tanto irracional de contestação sem entrar no mérito, em obediência cega às platitudes dos especialistas. "Os benefícios são maiores do que os ricos."





Tenho poucas dúvidas de que, se Bolsonaro propusesse o contrário, que a vacinação na faixa etária deveria ser urgente, a reação do ecossistema político-judiciário-midiático seria o contrário: "vamos devagar". Não fosse Bolsonaro, a reação em cadeia seria outra. O mundo político estará feliz por conversar com boa vontade sobre propostas semelhantes de Lula, sobre redes sociais ou sobre vacinas. 

Está relacionado a autoridade. Não por ser Lula, como não seria por ser um Fernando Henrique Cardoso. Mas por ostentarem ambos a postura que cultivaram nesse ecossistema. Em que é preciso se respeitar para ser respeitado.

O cenário hoje é de farra, com três poderes anões, cheio de anões se acotovelando para disputar com o grande anão do Palácio a primazia dos pequenos poderes. Que, ao contrário do princípio de Peter Parker, só traz irresponsabilidades. 

> Textos anteriores da coluna aqui.

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