Em torno do carro que levava Lula do seu instituto ao sindicato do ABC em São Bernardo do Campo, onde se refugiaria logo depois da ordem de Sergio Moro para prendê-lo, o mundo girava num ritmo de cinema.
nesta sua última biografia, um comboio de carros de todos os interessados na história — amigos, familiares, advogados, correligionários, imprensa — e helicópteros dos jornais de TV tentavam não perder o motorista esperto que cortava caminhos para evitar sinais e congestionamentos.
Como narra de forma eletrizante Fernando Moraes Moraes encadeia a cena a várias conversas nos tantos telefonemas que cruzavam os céus do país naquele momento, de políticos a sindicalistas da velha guarda de São Bernardo, para armar o circo em que resistiria por quase 48 horas e de onde achei que nunca se reergueria politicamente, como escrevi à época:
Dentro, com apoio do ajudante de ordens no celular, disparava telefonemas e tramava os próximos passos como se a movimentação lá fora não fosse com ele. Estava, como sempre, calculando os passos a frente, para dali a dois dias, das semanas, dois meses, dois ou quatro anos. Quatro e meio, se se considerar a eleição de outubro de 2022.
Com a teimosia, a resiliência e a capacidade impressionante de mover as peças do tabuleiro para virar o jogo e transformar praticamente em pó a montanha de acusações que o puseram no centro da mais importante operação contra a corrupção da história brasileira e municiaram os processos que o levaram para a cadeia.
Mais do que isso, transformar em criminosos os seus acusadores, numa das mais brutais inversão de valores de que se tem conhecimento em nossa história moral, e chegar praticamente limpo ao palanque de que o bom senso das leis e da sociedade recomendava mantê-lo afastado.
Mais ainda, além de propalado como inocente sem ser, transformar-se em solução para um país absolutamente sem rumo. Como se só mesmo um mandarim desse porte fosse capaz de dar jeito.
Diluído o problema da corrupção que o abateu e a seu partido temporariamente, tornando-a tema irrelevante no próximo pleito, agora era diluir o plebiscito que ainda se formava contra ele, em cima do recall dos seus males passados.
Por mais que seus fiéis se incomodassem com a ideia de uma polarização que o punha em equivalência com Bolsonaro em personalidade, métodos e propósitos, dois plebiscitos estavam armados para a eleição de outubro.
Um que colocava metade do país contra Bolsonaro, tornando fácil a tarefa de angariar mais alguns votos da direita contrariada para derrubá-lo no segundo turno contra qualquer que fosse o adversário.
Mas também um outro, da outra metade contra Lula, alimentado por votos até de esquerdistas frustrados com a má história do partido. Perderia de qualquer outro candidato, a exceção de Bolsonaro.
Assim como o capitão se isolou na defesa de pautas restritas à sua massa de radicais nas redes sociais, o petista também parecia fechado na esquerda, num teto difícil de ultrapassar além dos partidos que comungam de sua pauta, também restrita, de forte controle estatal.
Até o dia em que, na mais esperta manobra da temporada, resolveu convidar para compor sua chapa Geraldo Alckmin, um dos tucanos de papo amarelo mais emplumados do espectro adversário, emblemático de tudo o que seu principal arco de alianças odeia.
Com ele, abateu em 24 horas o alvoroço da sua massa de radicais de ferocidade bolsonarista, abriu o leque para uma série de outros contatos produtivos à centro-direita e diluiu, mais rápido do que se imaginava, o paredão que o isolava à esquerda no segundo turno.
De forma a sinalizar, com alta dose de realismo, para uma vitória já no primeiro turno. Em que à esquerda já fechada em torno dele se soma quase toda liderança relevante à direita e sobra pouco o que agregar aos demais candidatos.
Numa motoniveladora, colocou além de suas alianças tradicionais um tentáculo dentro de cada grande partido — PMDB, PSDB, PP, PSD —, já estruturou mais de um palanque em alguns estados (quase todos os relevantes de São Paulo) e conquistou no amplo espectro do noticiário político o estigma de conciliador.
— Conciliação é o outro nome de Lula — escreveu Demetrio Magnoli, o muito respeitado sociólogo que tantas vezes foi carimbado pelos companheiros de Lula.
A essa altura, tendo diluído os dois paredões, seu maior desafio parece ser o que alguns analistas, marqueteiros e estrategistas menores do governo ou mais argutos, na imprensa ou na política, apontam como seu terceiro calcanhar: as más companhias.
São aqueles aliados de dentro da cozinha, não relacionados com corrupção mas com o radicalismo invariavelmente associado a Lula e ao lulismo, por mais que ele se esforce por provar o contrário. Não fosse sua maestria e sua autoridade para enquadrá-los como patinhos em momentos de crise, não teria feito os acenos que sempre fez à parte da sociedade que o rejeita.
Começa pelos ideológicos albaneses de estado controlador, como Ruy Falcão, José Genoino ou José Dirceu. Passa pelos sindicalistas das greves e das invasões, alojados na CUT e no MST, como Wagner Freitas ou João Pedro Stedile. Amplia-se nos histriônicos como Gleisi Hoffmann, Lindbergh Farias ou Zé de Abreu.
Ou mesmo Jean Willys e Randolfe Rodrigues, que, mesmo em outro partido, são associados à constelação de gente irritada, cacofônica e agressiva que sobrevoa a cabeça de Lula como uma segunda natureza.
Não à toa, Bolsonaro passou a chamar a atenção para os nomes mais estelares dessa constelação em suas provocações. Tendo esvaziado o repertório de acusações possíveis ao petista, sem legitimidade para falar de corrupção ou força para ampliar alianças, tem sugerido como natural que voltem a um eventual governo do adversário.
— Alguém acha que se o cara [Lula] voltar, Zé Dirceu não vai para a Casa Civil? Dilma no Ministério da Defesa? Defesa, já que ela é mandona e uma arma poderosa conhecida.
Para um amplo espectro bem informado e menos ideológico, que até engoliria Lula como mal menor diante da falta de alternativas, essa trupe de radicais deu sonoridade ao discurso contra a zelite (os "nós contra eles") e só espera a hora de voltar para retomar o tom da agressividade dificilmente dissociada dos governos petistas.
Seus adeptos dirão que pode se dizer o mesmo de Bolsonaro em campanha. Sua volta poderia significar o retorno de extremos da extrema direita, como Abraham Weintraub ou Ernesto Araújo. Ou de despreparados como Ricardo Salles ou Marcelo Queiroga. Ou, para ficar no melhor exemplo, dos três filhos problemáticos.
Mas tratam-se aqui de personas que, até pelo tempo bem menor de exposição, não ganharam tal musculatura que lhes fizesse confundidos com uma época. E, para quem precisa de um nome como desculpa para que Bolsonaro não volte, basta o do próprio, bastante queimado a esta altura.
Para mim, fora os sindicalistas que querem tomar um dia do meu salário para fomentar greves ou o MST que me assusta, importam pouco os nomes. O petista ou o bolsonarista radical em si, de raiz, já é motivo suficiente para não votar em nenhum dos dois.
É aquela raça de fanáticos que nos bate com virulência abaixo da cintura nas redes sociais, nos chama de facista ou de porco, e, como já escrevi neste artigo, nos dá a certeza de que:
— Ah, não. Não dá para votar em Bolsonaro. Essa gente não pode voltar ao poder.
— Ah, não. Não dá para votar em Lula. Essa gente não pode voltar ao poder.
Esse o grande desafio de Lula: como esconder essa deficiência ou, como convém em campanha, transformá-la em virtude. Que reputo tão difícil quanto desmoralizar a Lava Jato ou convencer a sociedade de que virou centro-direitista desde criancinha. Mas não duvido que ele consiga.