Robert McNamara, secretário de Defesa de John Kennedy e do sucessor Lyndon Johnson, participou da fase inicial do fiasco da participação americana na guerra da Vietnã e do sucesso da rendição do Japão que pôs fim à Segunda Guerra.
Foi determinante no planejamento que matou 101 mil japoneses em apenas uma noite de março de 1945 e destruiu entre 30% e 60% das maiores cidades japonesas, a começar de Tókio.
Das duas experiências, acrescidas de mais de duas décadas como presidente da Ford e do Banco Mundial, retirou 11 lições sobre a arte da política e da guerra que está no documentário Na Névoa da Guerra, Oscar de 2003.
Nada muito novo para quem leu Maquiavel e Sun Tzu, mas consolidado com casos reais que vivenciou como protagonista de três momentos em que o mundo esteve à beira da hecatombe final. Além da Segunda Guerra e do Vietnã, a invasão da baía dos Porcos.
Neste, em que a União Soviética planejava plantar na costa cubana uma base de mísseis apontados para Miami, aprendeu que é preciso ter empatia pelo inimigo ("conheça o teu inimigo"). Saber que no íntimo Nikita Krushev não desejava a guerra conteve os assessores mais exaltados de Kennedy que o pressionavam por dizimar a ilha caribenha.
A ideia de que é preciso o mal para fazer o bem ("o mal de uma vez só e o bem aos poucos", diria Maquiavel) permeia o realismo de seu balanço de vida, cuja cereja do bolo é a ideia, velha como a guerra, de que o mundo é dos vitoriosos.
Depois de falar sobre as duas bombas atômicas que tiraram do mapa Hiroshima e Nagasaki ("o mal de uma vez só"), pontifica:
— Se tivéssemos perdido, seríamos julgados por crime de guerra.
Donde que não tenho nenhuma dúvida de que Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky não têm volta. Chegaram àquele ponto em que desistir ou ceder totalmente às condições do outro seria entendido como traição às populações que mobilizaram.
E esta, como sabe qualquer vereador de grotão, é mais desonrosa e fatal que a morte física de joelhos em praça pública.
Já a vitória evita a cadeia e conserta todas as feridas. Putin continua nessa porque viveu as patranhas do poder o suficiente para saber também que, depois do triunfo, perdas e erros se diluem nas justificativas em que se empenham aliados e adversários.
Os bancos, a Coca-Cola, o Mc Donalds, a Netflix, os cartões de crédito e todos os que o boicotaram reabrem as portas, porque a vida continua. Ok, a geopolítica e os direitos humanos, mas não vamos rasgar dinheiro, certo? Presidentes assinam tratados com promessas de correção de rumos e socorro às vítimas.
Putin e Zelensky tiveram seus motivos para fazer o mal em nome de suas concepções de bem: destruir um país para proteger suas fronteiras, no caso do primeiro; expor sua população para defender seu solo, no do segundo.
Zelensky merece todas as atenuantes, porque entrou para se defender numa guerra desnecessária provocada por um demente, tomado por delírios de emancipação do tempo do império romano com armas do sécuo XXI.
E precisam ambos de uma vitória ou uma derrota honrosa. Que é o outro nome de voltar para casa com o próprio rabo entre as pernas com uma boa justificativa para terem empenhado o rabo de suas populações.
A ideia de que a Rússia já perdeu a guerra é pertinente, mas só vai até o ponto em que Zelensky não perca tudo. Se for deposto ou morto, seu heroísmo será esquecido ou até amaldiçoado com o tempo.
É papel dos diplomatas, essa raça que pensa dez vezes antes de dizer nada, descobrir com que tipo de troféu de consolação cada lado pode salvar seus currículos, se é possível ainda falar de algum ganho ou perda mínima nessa tragédia toda.
E o que Lula tem a ver com isso?
Me ocorreu que, embora sabidamente seu partido e seus aliados mais radicais estejam mais para Putin e sua cruzada anti ocidental, ele está mais para Zelensky. No sentido de que entrou numa guerra que não pediu e, tendo entrado, não tem como recuar.
Já escrevi que Gilmar Mendes lhe deu um presente de grego ao liderar a anulação de seus processos na Lava Jato e jogá-lo numa disputa em que tem pouco a ganhar e muito a perder.
Vai ressuscitar tudo o que gostaria de ser esquecido numa campanha sangrenta e, se vencer, enfrentar um país ingovernável com mais chances de ferrar que melhorar seu currículo.
Minha tese é a de que Gilmar deveria ter deixado pelo menos uma condenação de segunda instância em aberto, que lhe tiraria da disputa e lhe daria a desculpa, até a morte, de que não salvou o país porque não deixaram. Como preso, deu em 2018.
Nas últimas semanas, como Zelensky, ele viu o inimigo avançar. As últimas pesquisas indicam um crescimento de Bolsonaro, na proporção de uma queda ligeira em suas próprias indicações, sinalizando um empate técnico a caminho.
Manter Bolsonaro em ligeiro crescimento, otimista com as pesquisas, estava nos seus planos de guerra, de forma a mantê-lo na disputa e conter o avanço de algum invasor da terceira via que lhe seria mais desconfortável.
Nunca houve dúvida mais séria de que venceria Bolsonaro no segundo turno. Mas por via das dúvidas, com seu radar intercontinental, adiou o quanto pôde o lançamento de sua candidatura para considerar a hipótese não desprezível de mandar outro para o cadafalso (Haddad, claro), se o cenário piorasse.
No cálculo, não considerou porém os tantos compromissos que engendraria, as tantas correntes de adesão que arrastaria e mesmo as condições favoráveis que construiria, tanto para uma vitória quanto para uma derrota honrosa, se for o caso.
Ele desarmou o plebiscito que se armava contra ele, isolado na esquerda, e criou outro contra Bolsonaro ao aglutinar as forças de todos os naipes, da extrema esquerda à extrema direita, numa frente a que dá o nome de democrática.
Com isso, terceiriza a derrota ou a transforma numa vitória moral. Ao invés de ir para a aposentadoria feliz dizendo que não salvou o país por que o STF não deixou (caso Gilmar lhe tivesse sido mais generoso e o impedisse de se candidatar), poderá dizer que quem perdeu foi a frente. E o país, que não a entendeu.
Como McNamara, claro que ele sabe que o mundo é dos que ganham, mesmo na derrota.