Já escrevi aqui sobre o surgimento e o avanço da militância de direita no Brasil, o papel de Olavo de Carvalho nisso e as dificuldades incontornáveis da esquerda para recuperar terreno na internet, onde, como nas ruas, já teve o monopólio.
Não vi aparecer ninguém relevante, suficientemente impactante nas redes sociais para mudar o quadro, até o fenômeno Rita Von Hunty, a drag queen que começou com um canal de veganismo e explodiu com vídeos sensacionais de educação política, aos seus moldes e da esquerda.
Por sorte ou azar da sorte, acabou ganhando alta repercussão fora da bolha dela, à direita, ao ser massacrada pela própria esquerda ao postar sua divergência com o discurso de Lula no lançamento da candidatura e a aliança com Geraldo Alckmin, em nome de sua integridade pessoal.
- Fere a minha existência - disse, numa entrevista reveladora de seu gênio e de sua integridade, ao canal da revista Fórum.
Um passeio por seu canal de mais de 1 milhão de seguidores me remeteu ao mesmo poder de impacto que Olavo de Carvalho teve à direita, sem o principal defeito dele, a agressividade.
Pelo contrário, nunca parece estar em guerra, embora esteja. Usa de suavidade e sedução para entender e desconstruir o argumento do outro, sem desqualificá-lo. Como professora e como seu apóstolo Paulo Freire - que aliás eu já combati aqui -, ela acolhe o outro, reconhecendo o seu conhecimento para desconstruí-lo com integridade e elegância.
Como o guru da Virgínia, ela também tem uma cultura intimidante e não fala nada o que não possa provar ou exemplificar. É daqueles raros influencers que fazem vídeo diante de uma biblioteca, mas que me passa a sensação de que de fato leu mesmo todos aqueles livros.
Cruza alta erudição com exemplos mundanos, como Olavo fazia bem, e uma doutrinação altamente didática, de linha quase motivacional, que arrasta internautas e interlocutores.
É visível como seus entrevistadores se mostram entre embevecidos, entre admirados e impotentes. Porque, com talento semelhante ao de Olavo para a polêmica, parece praticamente impossível discordar de suas posições.
Sua pregação, didática, dialética, paulofreiriana e claramente marxista, é, claro, a da luta de classes, naquela toada de exploração capitalista do homem pelo homem, dos povos conquistados pelos colonialistas, do preto pelo branco, da mulher pelo patriarcado.
Só que ela moderniza isso. Reelabora os conceitos a partir das modernas pautas da esquerda - diversidade, reparação histórica, diluição de fronteiras sexuais - contra o que a militância, sobretudo na universidade, chama de desequilíbrios estruturais provocados por privilégios cristalizados numa sociedade construída pela opressão binária.
Onde vai fazer todo o sentido a personagem ambígua que montou, símbolo ela própria da provocação à sociedade que quer transformar. Nesse vídeo em que coloco algumas pílulas dela e que deu base a esse artigo, há um trecho memorável da entrevista que deu ao canal de Rafinha Bastos, sobre a imposição da visão europeia de mundo que devastou as diferenças nos mundos conquistados.
Não resisto a lembrar que Olavo de Carvalho também criou/montou a sua persona, histriônica, para efeitos de incremento de rede social. O que, como também escrevi, no caso dele, acabou por comprometer o grande pensador independente das grandes obras que havia publicado até então.
Já a carcaça Rita Von Hunty tem um papel fundamental, indispensável, incontornável, no seu claro projeto político de provocação da binariedade do mundo, digamos, utilizando os próprios valores - inclusive estéticos - desse mundo para atrair, seduzir e estranhar. É um estranhamento que, por si só, já faz metade do seu discurso ser entendido.
- A forma é um conteúdo sócio histórico decantado - diz a Rafinha, citando Theodor Adorno.
Ela, na verdade Guilherme Terreri Lima Pereira, de 30 anos, começou a se montar, como se diz, em 2013, e lá por 2015 a fazer um canal de comida vegana, na ideia que o veganismo também é uma luta política contra, entre outras coisas, a forma predatória de produção do capitalismo.
Daí viria a embrenhar pela educação política propriamente dita, literal, juntando a sua experiência de educador e ator, professor de Literatura e estudante de artes cênicas, montado nessa persona que é o retrato, a alavanca, a muleta de sua guerra cultural por uma das obsessões da esquerda, contra a imposição de um modo binário de vida.
Bem decantados no tempo e no espaço, a forma e o discurso de Rita Von Hunty são tão bons que foi a primeira vez que alguém da esquerda me convenceu de suas razões, utilizando as novas pautas do identitarismo, de que em muitos casos divirjo, como uma nova alavanca para explicar as desigualdades inerentes ao capitalismo.
Mas, porém, contudo, entretanto, todavia, embora eu me sinta muito convencido do diagnóstico das disparidades que ela elabora, eu não consigo vislumbrar algum sentido na sua proposta de solução.
Embora me convença de que de fato a forma como construímos nossa sociedade cristalizou privilégios que só agravam a posição dos mais fracos, não vejo outra forma de buscar saná-las senão pelo pragmatismo que é inerente à minha forma e a da direita liberal de pensar.
Porque a concepção de mundo da esquerda, de uma solução fora do capitalismo, só pode desaguar no fortalecimento do Estado, que é a pior das soluções. Quando não vira opressor, porque ainda não descobriram uma forma de forçar a igualdade sem a restrição de liberdades.
Rita condena a falácia da meritocracia, por exemplo, do cada um por si e Deus por todos do capitalismo, mas qual seria a solução? O pedreiro, o porteiro ou o entregador de pizza só teria como futuro dentro de sua classe, até chegar a um ponto desejável de valorização garantida pelo Estado?
Quer dizer, a meta do pedreiro, do porteiro ou do entregador de pizza é ter consciência de classe e continuar lutando dentro dela para ser valorizado, e não considerar a hipótese de um dia sair dela? É permanecer lutando dentro até ter importância? E daí até a morte?
É muito Paulo Freire a ideia de valorizar o sujeito no seu habitat com as suas experiências, a sua história de vida, as suas crenças e até o seu vocabulário, que pode redundar, entretanto, numa nuclearização da sociedade, quase um sistema de castas com o que o identitarismo, aliás, namora.
O que se depreende é que seu projeto para a sociedade é a luta política em si, contra um opressor que está em cima, a elite cristalizada ou o Estado. É a política como uma causa contínua, a eterno longo prazo, como uma razão de vida.
No seu passo mais concreto, passa por educação como seus vídeos, publicação de livros, palestras, tomada de poder dentro do sistema, na universidade, nos meios de comunicação, na indústria do entretenimento, na construção de também uma hegemonia cultural, de esquerda, para se contrapor à da direita, que ela denuncia. Mas sem resultados objetivos, a médio e longo prazo para quem está embaixo.
Até onde se sabe, essa esquerda identitária se despregou exatamente do pobre, do pedreiro, do porteiro e do entregador de pizza. Trocou a luta por melhores condições de vida por melhores sensações de vida, digamos assim. (Já há alguma autocrítica a respeito.)
Pessoas como eu, acreditam em soluções mais plausíveis, produto da própria movimentação da sociedade, dentro do capitalismo, em busca da sobrevivência, porque é assim que o mundo anda desde que o homem saiu das cavernas.
É a briga darwinista dos mais adaptados. Nos moldes de hoje e como já se provou em todos os regimes que deram certo, é o desenvolvimento que produz oportunidades e incorpora os mais fracos. Nunca o Estado.
É óbvio que o modo de vida capitalista que criamos é um grande produtor de infelicidade, de ambições deteriorantes e a meritocracia por mesmo não resgatar os mais miseráveis, que dependem de alguma salvaguarda do Estado.
Mas também ainda não vi resultado prático na luta política da esquerda na economia, desde as greves tocadas por Lula nos anos 1980 e nem nas muitas que acompanhei nos setores de educação e de saúde, ao longo de uma vida.
Lamento, mas ainda estou naquela de que, como a democracia, o capitalismo é o pior regime que existe, mas ainda não apareceu melhor. O contrário é: ou fazer a revolução e implantar um regime socialista, ou é o Estado pagar, dar as condições de igualdade, ou, como Rita prega, continuar lutando, lutando, sempre, utopicamente. Lamento, mas discordo que seja possível ou prático.
Dito isso, é preciso dizer que não fiquei nem um pouco, pelo contrário, decepcionado com o impressionante material de Rita Von Hunty, seu talento e sua generosidade para acolher a opinião dos diferentes, processá-la e tentar mudá-la.
Com um respeito pelo outro lado raro na internet, que tentei reproduzir aqui neste artigo.
Aqui, artigos anteriores da coluna.