Jornal Estado de Minas

MÍDIA E PODER

Bolsonaro é culpado, mas índole palanqueira do PT também atrapalha



Pesquisa da Quaest divulgada pelo blog de Leonardo Sakamoto indicou que 53% de eleitores de Lula ficariam infelizes ou muito infelizes se seus filhos ou filhas se casassem com um bolsonarista e apenas 38% de eleitores de Bolsonaro ficariam idem ibidem se seus filhos ou filhas se casassem com um lulista.





Uma outra sobre polarização afetiva, do professor da USP Pablo Ortellado, analisou 48 mil perfis de redes sociais para chegar à conclusão semelhante, a de que a pessoa de esquerda é mais intolerante em relação à de direita.

E um artigo científico do professor da universidade Emory de Atlanta, Thomas Costello, desenvolveu um Índice de Autoritarismo da Esquerda para se contrapor ao conjunto de estudos da esquerda universitária que desde os anos 50 vinha consolidando a tese de que a intolerância é exclusiva da direita.

Minha experiência é mais básica e alimenta uma velha intolerância contra desonestidade intelectual, que dói mais num pai do que uma filha chegar em casa com um dos dois, como vai-se saber nas mal traçadas linhas a seguir.





Eu ainda era jovem nos primeiros dos 35 anos que passei dentro de uma casa legislativa quando me surpreendi com a ideia de que os deputados da direita não brigavam entre si. Eram votados em municípios e grotões diferentes cujo domínio os outros respeitavam, num pacto não escrito de cavalheiros.

Não brigavam com quem quer que fosse. Como tinham uma atuação basicamente clientelista, de atender demandas de prefeitos, vereadores, empresários e até mesmo as  individuais de eleitores, junto ao governo, cuidavam por não "melindrar" ninguém, segundo uma expressão da época. Não "criar arestas", outra.

Foi por aí também que notei a enorme diferença com os primeiros parlamentares de esquerda que começavam a brotar como cogumelos nos parlamentos, no início da retomada da redemocratização, nos estertores da ditadura militar, início dos 80. Brigavam entre si e contra todos.





Como se tratavam de candidaturas urbanas, vindas de grandes cidades, disputavam voto na mesma região geográfica e era comum que se estranhassem e se traíssem. Como nasciam e cresciam em movimentos políticos, em geral grevistas, contra a ditadura militar e depois governos e a elite econômica, só não brigavam com o eleitor.

Enquanto os de direita atuavam como despachantes de luxo carregando prefeitos e vereadores pelos palácios do governo, seu modus operandi era se reunir e fazer assembleias. Reivindicar algum direito etéreo coletivo (liberdade, democracia, direitos humanos ou salários e planos de carreira do funcionalismo) e bater retoricamente em quem de direito no topo da pirâmide.

Com o tempo, a coisa derivou para o assembleísmo — uma piada dava conta de que o PT se reunia para decidir até quem ia bater um prego —, a agressividade tornada pauta de um combate cotidiano às elites e um talento para se fazer de vítima "do sistema". Provocava, em greves e passeatas, e faturava a reação em contrário.





Transportada para o poder, a partir da posse de Lula em 2003, a prática virou espécie de política de estado. Foi o primeiro governo de que se tem notícia de que governava como se estivesse num palanque, sem entender muito bem de que lado estava. Numa esquizofrenia, atacava as elites que em tese lhes atrapalhava governar mas com as quais almoçava, jantava e dormia.

Essa base de formação delineou o perfil do parlamentar típico de esquerda que viria a protagonizar o noticiário pelas décadas seguintes, como José Genoíno, Jandira Feghali, Benedita da Silva, Lindbergh Farias, Maria do Rosário, Jean Willys ou Gleisi Hoffman. 

Um tipo de palanqueiro full-time incapaz de pegar um microfone para desenvolver um argumento sem atacar algum culpado da elite pelas causas. Um megafone ambulante de uma plateia permanente a ser esquentada contra os poderosos.  

Mais que isso, totalmente inabilitado emocionalmente para contemporizar mesmo quando urgente diante de um desastre provocado por declarações ruins de Lula ou de tragédias como a do bolsonarista tresloucado que matou um petista inocente em Foz do Iguaçu.





Até 2013, pelo menos, eles transitavam com tranquilidade contra uma elite que se divertia com os ataques enquanto se beneficiava dos governos que dirigiam de cima do palanque. Mas quando, a partir daí, surgiu e se consolidou uma militância de direita com os mesmos métodos, a coisa encroou e desandou para a polarização de extremos que deu no que deu.
Por conhecer bem a gênese dessa índole palanqueira, herança inconsciente de uma violência revolucionária que vem desde a revolução francesa, passando pelos paredões e assassinatos em massa do comunismo até chegar ao MST,  me arranha a sensibilidade ler gente séria falando em “falsa simetria”.

Como na última semana, ainda no rescaldo da tragédia de Foz do Iguaçu, em artigos de pelo menos cinco articulistas que respeito muito em diferentes veículos de comunicação igualmente respeitáveis. Deram asas à tese que serve para ocultar a parcela de culpa do lulopetismo no clima de crispação que vimos produzindo há pelo menos uns 20 anos, desde que o petista mais perto passou a nos chamar de fascistas.





Até a semana passada e a tragédia, ela vinha sobrevivendo na terra sem lei da esgotosfera e não havia chegado às redações, às quais acusa de dar tratamento injustamente igual à diferença brutal dos métodos atuais dos dois lados. Criar falsa equivalência no que não seria comparável: a personalidade bélica de Bolsonaro, para dizer o mínimo, à de Lula. Equalizar o que não é equalizável, como escreveu um deles.

Como escrevi aqui, acrescentaram o neologismo "doisladismo", o método jornalístico de ouvir os dois lados, para acusar os jornalistas dos meios tradicionais de subterfúgio para produzir um equilíbrio que não existe e favorecer certa proteção aos disparates incomensuravelmente maiores de Bolsonaro. 

Reinaldo Azevedo, que está entre os cinco e é amado nessa banda, já tinha dito há mais tempo em vídeo, entre seus arroubos de indignação, que jornalista que toma Bolsonaro como igual a Lula só pode ter comido cocô.





Em suas defesas, meio rendidos a esse apelo, esses articulistas chegaram a listar frases e contextos de Bolsonaro que não deixam dúvida de fato do grau indiscutível muito superior do presidente em agressividade e tentações totalitárias e golpistas que envenenaram e continuam envenenando o ambiente. 

Já publiquei o suficiente aqui para reconhecer, muito antes da semana passada, que sua obsessão por cliques e controle da narrativa de forma a manter energizada sua tropa na mesma esgotosfera, já tinha torrado os seus miolos para o mínimo de preparo indispensável ao cargo.

Já estava convencido há mais tempo de que Lula é ser humano melhor e estou mais certo hoje de que suas escorregadas em defesa de regimes totalitários e de diferentes tipos de censura não podem ser comparados. Podem ser interpretados no plano da retórica, quase especulação filosófica sem maiores estragos, do que as agressões duras, cruas e dirigidas do presidente da República mais despreparado que já tivemos.





Meu incômodo está em que, ao registrar as fartas provas da agressividade totalitária e comprovadamente desumanas do presidente, eles se atenham a uma comparação do tempo presente, que é francamente favorável a Lula, e desprezem o passado, o que ele e seus militantes fizeram nos verões passados.

Estaria faltando certo esforço de simetria, um doisladismo mesmo, em suas análises. Avaliar, pelo menos em um parágrafo, qual a responsabilidade pretérita e presente da militância de esquerda no clima belicoso que se ampliou na semana passada.

Mesmo o elegante Fernando Gabeira, uma flor de isenção, defendeu que a violência política, que cobre há 40 anos desde o assassinato de Chico Mendes e Dorothy Stang, é a primeira vez que vem de cima. Como se não tivessem havido os verões passados do governo Lula e sua aliança com a violência patrocinada do MST e dos sindicatos. 





Há bom tempo que uma navegada com um mínimo de isenção pela timeline do Twitter é suficiente para se enojar do gangsterismo das agressões de lado a lado, de figuras notórias da direita e da esquerda, desesperadas por um mínimo de protagonismo à cata de clique, onde a última intenção é contribuir para serenar os ânimos.

Confesso que a cada crise, sobretudo naquelas em que o PT é envolvido por uma fala despropositada de Lula ou de algum prócer do partido, procuro ouvir a presidente Gleisi Hoffman, e ela nunca me decepciona: é agressividade pura.

Ela é quem mais me remete ao que mais confirma minha opinião sobre essa índole palanqueira de ataque como método para se defender, criar fato ou posar de vítima.

Articulistas políticos do naipe dos que admiro - e concedem à tese - conhecem bem o método Lula desde o sindicato e depois como político e presidente da República de colocar a peãozada, os sindicalistas ou o MST na rua para assustar as elites, negociar sob pressão e posar de conciliador.

Donde quero entender e me compactuar com eles, mas não consigo descartar que a violência política não é produto recente e de um lado só. Que a esquerda que tento entender há 40 anos não tenha alguma responsabilidade nela.

Meu esforço aqui é para que, sem deixar de chamar Bolsonaro às suas responsabilidades, de fato maior no episódio, não deixemos de iluminar o outro lado na estrada que nos trouxe até aqui. É papel de jornalistas, salvo quando estão empenhados em propaganda.