Em abril, quando PT e as esquerdas não ganharam e ainda perderam deputados ao fim da janela partidária de troca de partidos, escrevi neste artigo que Bolsonaro tinha muito mais chances de crescer nas pesquisas do que Lula.
De lá para cá, embora ressalvando os avanços do petista, fui acrescentando ao vaticínio evidências e oportunidades por vir com potencial de beneficiar mais o presidente que seu adversário. Que chegam a sete na minha conta de hoje, data oficial do início da campanha eleitoral:
1 - a militância a seu favor dos mais de 300 parlamentares do Centrão, que arrasta voto no interior profundo país afora,
2 - a melhora da economia,
3 - a distribuição dos benefícios sociais turbinados, Auxílio Brasil, vale gás e voucher caminhoneiro,
4 - a propaganda eleitoral dos feitos do governo que sempre beneficiou todos os candidatos à reeleição, como Dilma Rousseff, em 2014,
5 - a fragilidade dos candidatos de Lula nos três colégios eleitorais determinantes — Haddad e Freixo em São Paulo e Rio, por razões ideológicas, e Kalil em Minas por confrontar um favorito,
6 - seu avanço retumbante no contingente tentacular dos evangélicos, que abrange mais de 30% da população, um nordeste,
7 - e, causa, reflexo ou consequência dos anteriores, a rejeição na maioria conservadora do ideário progressista de costumes, base da mensagem lulopetista.
Para azar de Lula, a esquerda que lhe dá sustentação é a mesma mundial que dispensou o bonde da luta de classes e priorizou a defesa do ambiente, dos direitos humanos e das minorias sexuais e raciais. Num conceito de igualdade, menos por razões econômicas que morais, estranho ao da maioria.
É uma esquerda que defende tudo o que a sociedade não quer ouvir: direito ao aborto, descriminalização de drogas, igualdade de gêneros, cotas raciais, redução das áreas de plantio do agronegócio em contrapartida à ampliação por restauração das áreas indígenas e ocupação de terras por sem-teto e agricultores familiares.
Acrescente-se outros específicos e mais prementes da campanha brasileira, como revisão da reforma trabalhista, corrupção e posse de armas, para desequilibrar uma equação delicada. Em que a questão nem é o que dizer, mas não poder dizer a maior parte do que está em pauta ou colocado na agenda pela campanha bolsonarista.
Por mais que Lula, sua cúpula de campanha e sua militância evitem esses assuntos, por cálculo eleitoral, é difícil que não sejam cobrados por eles ou sejam obrigados a dar respostas quando se tornam inevitáveis pela pressão da campanha contrária.
Tome-se o caso mais palpitante e recente do direito à posse de armas, que Bolsonaro ampliou exponencialmente e transformou em alavanca vigorosa de desmoralização do discurso de direitos humanos, um clássico da esquerda.
E numa sinuca de bico. Lula, sua cúpula e todo o pensamento progressista, com alguma ressonância em larga faixa da maioria conservadora, são a favor de cancelar os muitos decretos de ampliação de acesso e, se possível, voltar a tomar armas da população, como se fez no primeiro governo petista.
Mas seria um suicídio político. A ideia de que a posse pode inibir a ameaça criminosa pode não ter virado um consenso na sociedade, mas o é, entre outros, os luminares do agronegócio que viram a invasão de suas propriedades pelo MST cair a praticamente zero nos últimos quatro anos.
Pode não ter virado um consenso diante do aumento visível de casos de violência por porte de arma no noticiário, mas tornou-se referência no debate sobre as políticas de segurança pública e do papel da polícia, calcanhar de todos os governos do PT.
A ponto de o partido acabar de retirar do programa de governo lulista o prometido revogaço dos decretos que ampliam o acesso a armamento e medidas de controle que caem mal na classe policial, como os conselhos de segurança pública e as câmeras no uniforme.
Nos debates na cúpula petista, prevaleceu a lembrança do trauma da campanha de Fernando Haddad, em 2018, que levou água para o moinho de Bolsonaro ao defender a descriminalização das drogas e a desmilitarização das polícias.
A Lula sobrou só o discurso da economia, em que pode ostentar a autoridade conquistada na bonança de seus dois governos. É o que ele vem fazendo desde que readquiriu seus direitos políticos, ao mesmo tempo que radicalizou nos conselhos para que a militância não caísse na provocação da pauta de costumes.
Mas, também para seu azar, não só a economia interna dá bons sinais de recuperação para o governo, como lhe são altamente desfavoráveis as notícias que vêm de fora, em especial de seus parceiros ideológicos, Venezuela e em especial da Argentina.
Com inflação de mais de 60% ao ano e mais de 7% ao mês que torrou sua moeda, a Argentina é dos assuntos espinhosos para Lula como reforma trabalhista, aborto, uso de armas ou invasão de terras. Terá que explicar como que, com tantas afinidades com o modo portenho de controle estatal, não vai fazer com que nos transformemos em uma, sob suas mãos.
A coisa lhe é tão adversa que, mesmo em temas em tese francamente desfavoráveis a Bolsonaro, é incontornável a impressão de que estaria falando de corda em pescoço de enforcado. Corrupção e democracia, por exemplo, dado seu passado de réu e suas afinidades sinceras com regimes despóticos de Cuba, Nicarágua e Venezuela.
Bolsonaro está na posição confortável de ter à mão um repertório de acusações ao adversário que só o fortalecem na maioria conservadora, sobretudo entre os evangélicos, e muito pouco que lhe sirva de constrangimento num debate abrangente como o que lhe aguarda o Jornal Nacional, na próxima segunda-feira, dia 22.
Tem contra as três acusações mais pesadas, comprováveis e em tese fulminantes da temporada: corrupção na família, morte de um bom número de brasileiros por sua política anti-vacina na pandemia e ameaças de derrubada do regime por golpe militar. Mas que não têm se revelado determinantes.
Porque elas não impactam o conjunto das motivações humanas que favorecem mais o conservadorismo de Bolsonaro do que o progressismo de Lula e sua entourage, segundo um grande livro que está virando best-seller mundial, A Mente Moralista, do psicólogo americano Jonathan Haidt.
Ele prova cientificamente como que a intuição humana, muito mais poderosa que a razão, evoluiu para privilegiar seis valores: cuidado, justiça, liberdade, lealdade, autoridade e santidade. E como o sentido conservador de preservação se identifica com todos eles, ao passo que o pensamento progressista só se enquadra em dois.
Progressistas são mais convictos sobre justiça e liberdade, não por acaso conceitos mais vagos e ainda por cima de forma divergente da maioria. O conceito de justiça/igualdade dos progressistas não é o mesmo dos conservadores, de a cada um conforme a sua competência.
Isso explica o que é uma incógnita para a esquerda, por exemplo, de porque trabalhadores votam em candidatos afinados com pautas liberais do interesse dos patrões ou mesmo brucutus como Bolsonaro. Porque não é a economia, estúpido, mas respeito a tradições, em especial o instinto de preservação delas, caríssimo à maioria.
As tentações autoritárias de Bolsonaro estão muito mais enraizadas numa necessidade humana ancestral de autoridade, ordem e santidade (fortes no pentecostalismo em que o presidente vem nadando de braçada) do que na degradação da pauta de costumes identificada com as convicções de Lula.
O velho petista pode ser uma pessoa melhor, ter mais carisma e boas intenções, mas representa um desregramento perante os valores que o ser humano foi incorporando na evolução. Não incontornável, como mostrarei quando voltar ao assunto, numa resenha do livro.