Domingos Fernandes Calabar foi um bravo militar da capitania de Pernambuco que lutou contra a principal das invasões holandesas, na região de Olinda e Pernambuco, lá pelos idos de 1630. Mas que mudou de lado e ajudou os invasores a se expandir pelo Nordeste antes de ser morto como traidor pelas tropas do governador Matias de Albuquerque.
Passou em parte da historiografia nacional como traidor do bem, por ter tomado o que seria o lado certo. O da administração revolucionária que, pelo menos nos primeiros anos, entre 1637 e 1643, sob comando de Maurício de Nassau, recuperou a economia e transformou Recife numa metrópole moderna de ruas largas e limpas, pontes, afluentes despoluídos, trânsito de artistas e cientistas.
Debaixo da opressão do regime militar, sob censura severa, usaram o anti-heroísmo para questionar a história oficial, defender a traição como causa ("Não existe pecado do lado debaixo do Equador") e dar curso à ideia de quão bom poderia ter sido o Nordeste ou talvez o Brasil se os holandeses o tivessem tomado dos portugueses.
"Um dia este país há de ser independente. Dos holandeses, dos espanhóis, dos portugueses… Um dia todos os países poderão ser independentes, seja lá do que for. Mas isso requer muito traidor. Muito Calabar”.
Ou pelo menos o Nordeste, um quase país de sol calcinante e pouca água, poderia ter se dado melhor se tivesse cuidado da própria vida. Entregue a qualquer outro invasor que não o do patrimonialismo e da incúria dos políticos portugueses e dos seus sucessores brasileiros.
Um de quatro outros, de quatro climas e culturas diferentes que caberiam muito confortavelmente — e certamente com mais eficiência — e bem acomodados nesses 8,5 milhões de quilômetros quadrados, mal aproveitados por uma elite predatória desde 1500.
A ideia de que esse gigante bobo e atrasado, amarrado numa administração centralizada em 500 anos de tentativas e erros, mais erros que tentativas, me ocorreu na leitura, nesta semana, de duas grandes entrevistas de um dos nossos maiores historiadores vivos, José Murilo de Carvalho.
Autor de um livro entusiasmado com a visão de mundo do imperador Pedro II, admite, porém estar profundamente desanimado com o fracasso das tentativas de desenvolver um projeto de nação nesses trópicos, desde a Independência.
Chega a sugerir que o país talvez estivesse melhor se tivessem dado certo os movimentos separatistas do século XIX, como disse ao jornal português Público:
— É uma pergunta que sempre me faço e não consigo responder. O que foi melhor? Permanecer esse monstro unido, ou teria sido melhor se separar em vários países? Um fator muito forte da identidade nacional é o tamanho gigante e as riquezas naturais do país, o “motivo edênico”. Ter orgulho do Brasil pela Amazônia, mas jamais por nossas lutas. Em matéria de memória, sofremos um Alzheimer coletivo. A unidade foi uma vantagem? Talvez sim. A língua é uma só.
Só. Trata o tema de raspão e não chega a sugerir qualquer tipo de divisão, como a que me ocorre, a partir desses mesmos movimentos separatistas que pipocaram em diferentes partes, de norte a sul, em torno de 30 anos, em reação à Coroa Portuguesa, entre 1817 e 1850.
Tivessem dado certo, teríamos mais três países além do dominado por Dom João VI em sua rápida hospedagem aqui e por seus Pedros I e II: o que corresponderia aos quatro estados que exploraram desde o descobrimento, pela ordem: Bahia, Rio, Minas e São Paulo, sem muito interesse pelo restante.
Esse país de praias, cacaueiros, montanhas e cafezais, sim, estaria comemorando seus 200 anos de Independência nesta quarta-feira (7/9), com ou sem a necrofilia do coração in vitro de seu proclamador.
Talvez até recebendo em festa os presidentes de seus três territórios vizinhos ilustres, nascidos de sua costela, nos movimentos de emancipação inspirados nos ideais iluministas da Revolução Francesa contra o absolutismo e a obrigação de mandar dinheiro para a Coroa. Também pela ordem:
1 - O país de Pernambuco ou Olinda, emancipado em pelo menos uma das três guerras internas que travaram contra a Coroa, sob João VI e os Pedros, por mais de três décadas: Revolução Pernambucana, Confederação do Equador e Revolução Praieira.
Mais rica região do país, englobaria o Nordeste a partir de Alagoas até o Ceará. Tivesse se libertado na primeira tentativa, que eclodiu em 6 de março de 1817, teria comemorado seus 200 anos de independência em 2017, possivelmente com partes preservadas de seus padres enforcados.
2 - O país da Amazônia, expandido a partir das lutas de índios, negros e mestiços das cabanas à beira do rio, os cabanos do movimento conhecido como Cabanagem. Espalhou-se do Pará — onde a notícia da Independência de Pedro I sequer chegou num primeiro momento — por Amazônia, Amapá, Roraima e Rondônia.
Seus 200 anos de independência seriam comemorados a 3 de janeiro de 2035, 200 anos depois do estopim do conflito que durou cinco anos e poderia ter arrastado junto o Acre e o centro-oeste, com quem tem afinidades ecológicas, se o exército da Coroa não tivesse dizimado 40% da população do estado líder, Pará.
3 - O país ou República Rio-Grandense abrangeria os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a partir da proclamação da independência da República de São Pedro do Rio Grande do Sul, ao cabo das batalhas da chamada Guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha.
Tivesse vencido, os 200 anos de sua emancipação seriam comemorados também em 2035, no 20 de setembro que marcou, também em 1835, a deflagração do movimento que durou então dez anos.
Determinismo retroativo como o que faço aqui não serve para nada, mas é doce especulação filosófica para falar mal do país que nos traiu, a mim e a Murilo de Carvalho, pelo menos. Para refletir que estariam melhores se tivessem que se haver com a própria vida e a própria história, num espaço territorial menor e mais administrável.
Em que as potencialidades do litoral nordestino, da exploração econômica da floresta amazônica e da imigração europeia do sul, cada uma no seu quadrado, poderiam ter sido descobertas algumas décadas ou séculos antes, não tivessem ficado dependendo das pernas atabalhoadas do distante poder central.
Que nunca foi competente para administrar sequer os quatro estados de origem. Sufocado por suas próprias guerras internas — Inconfidência Mineira, Conjuração Baiana, Conjuração Fluminense, Revolução Constitucionalista — e pela urbanização selvagem que destruiu o ambiente, as cidades, as instituições.
Murilo de Carvalho diz que desperdiçamos todas as grandes oportunidades de construir um projeto de nação. A Independência, a Proclamação da República e a Revolução de 30, para ficar nas maiores, foram grandes arranjos de elite para mudar tudo sem mudar nada.
— Há uma sensação de fracasso. Não temos como nos transformar numa grande potência. Como disse José Bonifácio, o sonho da Independência foi que, pelo tamanho e pela população, tínhamos condições de nos transformar num “grande império”. Mas quem conseguiu? A China. Qual país vindo da tradição portuguesa ou espanhola teve êxito? Isso faz com que comecemos a perguntar: o que deu errado?
Anda desalentado com nossa jovem democracia, de apenas 37 anos a contar do final do regime militar, em 1985, que só teve povo a partir dos anos 50, depois da ditadura do Estado Novo e às vésperas de outra, a de 1964. Horrorizado em especial com a disparidade que provocamos.
— O que me intriga é que vivemos em uma democracia, as pessoas votam. Mas o produto deste voto é um Congresso, uma elite, medíocre, preocupada com reeleição, em conseguir dinheiro, com o financiamento de milhões para os pleitos, mas não se passa legislação que afete a desigualdade.
Não só. Essa elite sem visão de futuro, que sempre administrou mal a fronteira de seus próprios gabinetes entupidos de funcionários filhos do patrimonialismo, sentada desde sempre em cemitérios de obras que não acabam, se meteu a inspirar Pedro II a expandir as fronteiras do gigantão a ferro a fogo.
Sempre deu muito errado com as mais distantes, o nordeste e a Amazônia, sobretudo, onde todos os governos falharam miseravelmente em proteger os mais pobres e produzir riqueza. E mais ou menos no sul, salvo pela colonização europeia, pela baixa imigração interna e, por sorte deles, pouco interesse do poder central.
Foi mal e porca e especialmente no próprio terreiro, o eixo central do triângulo Rio, Minas e São Paulo, onde sobrevivemos em péssima qualidade de vida, numa violência cotidiana de mal podermos sair às ruas.
Se nossos imperadores tivessem se consolado em ficar só por aqui, com menos território para exercitar sua inapetência, é bem possível que tivéssemos melhores condições de vida. Nem que fosse, por proporção obrigatória, um congresso bem menor, de metade ou um terço do tamanho atual.
Já seria um grande motivo de comemoração nesta quarta-feira.