Jornal Estado de Minas

RAMIRO BATISTA

O fator sudeste para Bolsonaro e a ideia de coesão viva da rainha morta

De todas as apostas que se fazem a 20 dias da eleição, a primeira e mais persistente é a de que a boca do jacaré está se estreitando. É a ótima imagem para ilustrar a aproximação das duas pontas dos gráficos de pesquisas que traduzem o estreitamento da diferença a favor de Lula sobre Bolsonaro.





E a segunda, produto de mais torcida que análise técnica, é a de que o quadro está tão consolidado, os votos tão definidos, que a aproximação dos dois não altera o favoritismo do petista. Qualquer movimento novo, incluindo o do voto útil nas vésperas, consolidaria o quadro e favoreceria o favorito. 

Carlos Augusto Montenegro, o veterano analista de pesquisas que fundou o Ibope, hoje Ipec, chegou a afirmar nas vésperas do 7 de Setembro que a eleição já estava decidida e poderia ser realizada no dia seguinte.

— A campanha demorou quase dois anos. Mas acabou. Falta o eleitor pôr o voto na urna.

Não ouso duvidar das projeções de tanto especialista venerável nas mídias velhas e novas, em vista da dificuldade mesmo de antever mudança mais radical num quadro em que o crescimento de um deles de um lado, em um público, compensa a melhora do outro em outras faixas.





A dificuldade de Bolsonaro no Nordeste e entre mulheres é contraposta pela melhoria no sul e recuperação do voto de brancos ricos arrependidos. A perda de terreno de Lula entre os evangélicos e agropecuaristas é compensada pelo avanço entre os jovens e a classe média acima de dois salários. Etc.

As alterações não mudariam o quadro, por falta de tempo. O jacaré morde a boca no dia do pleito, uns dentes a favor do petista, sem que o presidente consiga fazer valer o valor de sua caixa de mágicas — redução do preço dos combustíveis, Auxílio Brasil e etc — para reduzir seus ainda altos índices de rejeição.

Mas restam as movimentações no sudeste, espaço, faixa ou diferencial que vem sendo negligenciado nas análises e pode tornar o crescimento de Bolsonaro de fato ameaçador, além das alterações percentuais periféricas nas diferentes estratificações.





Não por ele, mas pela má sorte do adversário de estar vinculado a candidatos a governador de baixo empuxo. Bolsonaro tem ou terá o apoio dos três candidatos de longe mais viáveis no triângulo das bermudas, em sentido inverso ao de Lula. Que pode perder aí, não também por si mesmo.

Tarcísio de Freitas em São Paulo, Cláudio Castro no Rio de Janeiro e Romeu Zema em Minas Gerais são potenciais favoritos contra três bons sujeitos que carregam o fardo da ainda alta rejeição à esquerda e ao petismo: Fernando Haddad, Marcelo Freixo e Alexandre Kalil.

Se há um crescimento significativo de Bolsonaro sujeito a se ampliar, acima da capacidade de concorrência de Lula, é entre o eleitorado desses governadores, que vincularão seus votos ao de presidente. 

O caso de Minas é mais emblemático. Lula navega bem no favoritismo de Romeu Zema, no Lulema pelo interior, enquanto o governador não assume claramente — e por conveniência — sua afinidade total com Bolsonaro. Mas só até quando o governador tomar partido, ainda no primeiro ou no segundo turno.





A essa altura, grande parte da torcida contra o presidente duvida da sua capacidade de reagir a tempo diante da estagnação favorável de seu concorrente. Mas, contra toda a torcida, é Lula que, além de não sair do lugar, tem as piores perspectivas.

A rainha e seu modelo

Quis o destino que uma multidão histórica que representa metade da vontade do país fosse às ruas no 7 de Setembro para assinalar nosso divisionismo radical contra a outra metade, no semana em que morreu o maior símbolo moderno de unidade política.

Elizabeth II foi a soberana que inspirou por mais longo tempo e como nunca um sentido de coesão, tradição e pertencimento que extrapolou fronteiras e se esforça por se mostrar vivo ante o modelo fraticida que líderes como Bolsonaro representam.





Passou além do Reino Unido a ideia de que países precisam de uma referência aglutinadora, um guia espiritual que mantenha acessos valores comuns que unifiquem suas populações apesar das disputas eventuais.

Na excepcional série The Crown, da Netflix, e de farta literatura sobre a família real, se aprende o tamanho do fardo de ser rainha ou pertencer a essa família, por consanguinidade ou casamento. 

É uma onerosa devoção ao serviço público, em regras, posturas e restrições de etiqueta diários, torniquetes de todas as vontades pessoais, para que cada membro espelhe em público os valores que essa sociedade escolheu eleger: comedimento, despreendimento, idealismo e generosidade.

Com base nessa ideia, já escrevi mais de uma vez o quanto a monarquia, apesar da má fama de anacronismo que soa ridícula até nas roupas da Idade Média, é muito mais eficiente e mais barata que a República para atingir os mesmos objetivos.





Leia: Presidentes custam mais que rainhas e valem tanto quanto
 
Entre outros de contra peso e estabilidade, os de que os países precisam de alguém ungido que congregue, represente e/ou inspire os valores nobres em que um país precisa manter e acreditar para seguir forte e grande. Não juntando uma parte contra a outra, muito menos em comemorações oficiais.

Nas democracias, pelo voto, são os presidentes que representam esse papel. Incorporam e inspiram, ou deveriam, esses valores. Aprovados nas urnas, vão tratando de convencer e cooptar a minoria que divergiu. 

Espera-se sempre de um presidente eleito que tenha consciência desse papel, da responsabilidade com os princípios que projetou e que consiga convencer os vencidos. Aos quais cabe aceitar as regras do jogo até uma próxima eleição.

Porque são os valores permanentes, e não as disputas eventuais, que importam para vivermos em paz.

Quem vai escrever como João Paulo?

Não o conheci pessoalmente e nada sabia sobre sua história pessoal até o sábado em que li sobre sua morte. O que sabia de João Paulo Cunha era a produção jornalística de bagagem cultural intimidante que me inspirou a escrever um artigo extasiado de admiração.





Naquele já longínquo 22 de abril de 2013, tinha sido o melhor que havia lido sobre o dilema dos jornais diante do avanço da internet e da crise existencial dos jornalistas na iminência do fim de sua missão:

— Somos perseguidos pela inevitabilidade do fim dos jornais. Apenas os prazos mudam, se alargam um pouco, mas deixam sempre um rastro de crise no ar. (…) Hoje não precisamos de jornal para conhecer o mundo, nem de jornalistas para reportá-lo. (…) Hoje se faz jornal sem papel e sem máquinas.

Ou:

— O jornalismo, com sua função social de garantir a liberdade de opinião na sociedade, vem sendo açodado por todos os lados. Há o ataque das novas mídias, a fuga de leitores em direção a plataformas mais divertidas, o decréscimo da lucratividade das empresas, o avanço de investidores sem tradição no negócio e a perda dos objetivos éticos em nome do interesse financeiro.

E ainda:

— Pode parecer um paradoxo, mas é exatamente o excesso de informação o maior inimigo do bom jornalismo. Nem todo fato é informação, nem toda notícia publicada é jornalismo. A confusão gera não apenas um cenário confuso como eticamente cambeta. A tendência do deslocamento da informação trabalhada com inteligência jornalística para o mero lado apresentado pela multiplicidade de suportes tecnológicos não traduz um nova democracia informativa, mas uma balbúrdia.





Sobre ele, quase de joelhos, escrevi:

"É possível que não houvesse alguém mais talhado para essa autocrítica do que João Paulo. É daquele tipo de jornalista da velha cepa, quase jurássico para esses tempos vulgares, de estupenda formação teórica, que se obrigava a ter um bom domínio de todos os campos do saber e a costurá-los com eficácia de forma a contribuir para a construção de uma ética.

Se o jornalista comum foi sempre um especialista em generalidades, pode-se dizer que esse tipo se pautou por ser um especialista em profundidades. Um Cláudio Abramo, um Ivan Lessa, um Paulo Francis – não por acaso já mortos – que não faziam concessões à superficialidade.

Seu caderno Pensar, que circula aos sábados, é uma trincheira meio exótica e resistente desse tipo de jornalismo do pensamento (como o Ilustríssima da Folha de S. Paulo), meio sem lugar no mundo dominado pela leitura dos cliques obsessivos e pela comunicação de 140 toques.





Em geral, é ele mesmo que puxa o tom do caderno desde a capa, escrevendo a matéria principal, onde se vislumbra sua catedral de conhecimento, transitando com desenvoltura da filosofia à psicanálise, da literatura à história, da economia ao entretenimento. 

E complementa com seu artigo pessoal, na segunda página, outra espécie de trincheira da trincheira da antiguidade clássica, onde exercita sua luta algo incansável sobre a mediocridade desses tempos. Em artigos quase sempre definitivos, raros na imprensa nacional pela sua abrangência e pelo estupendo volume de informação, sem prejuízo da clareza."

Leia o artigo completo: Quem vai escrever sobre o fim do jornalismo senão João Paulo?