Foi em 2016, na eleição de Donald Trump, que os institutos de pesquisa tradicionais levaram a primeira grande traulitada da era da internet. Por unanimidade, tinham cravado a vitória da adversária Hillary Clinton até a noite da véspera.
O poder das redes sociais de virar o jogo à última hora explicava o vexame que foi se aprofundando nas eleições seguintes, como o da indicação de Dilma Rousseff para o Senado em Minas, em 2018. Mas nada que se aproxime e explique o das eleições de 2022 no Brasil, com ares de escândalo.
Fora o erro de quase 10 pontos entre o que indicaram e o resultado para presidente da República (de 15 para 5 pontos a diferença pró Lula), erraram a ponto de apontar o inverso em distâncias escandalosas de até 20 pontos nas eleições estaduais.
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Novo ET dos debates e melhor desconstrução podem provocar segundo turnoBolsonaro tenta à última hora e em vão mudar DNA de encrenqueiro13 sacadas do panorama eleitoral a partir da onda de agressividadeO fator sudeste para Bolsonaro e a ideia de coesão viva da rainha mortaDe cerveja e de torresmo para resolver guerras e compor ministériosTerem errado a votação de candidatos da direita em sua maioria, é que foi, entretanto, a grande novidade. É dado novo que pode explicar o fiasco e sinaliza uma avaria grave e talvez definitiva na credibilidade, porque destruiu o próprio método com que trabalham.
Há uma possibilidade não desprezível de que o eleitor de direita, massacrado pela pregação de Bolsonaro contra os institutos de pesquisa, tenha passado a boicotá-los. Ao invés de declarar o voto para fortalecer seu candidato, como era de se esperar, deixou de responder ou respondeu errado.
Diante disso, é quase impossível que eles acertem os próximos resultados. Por mais que estruturem bem a amostra e os questionários, como confiar numa base que é movediça ou de alto poder de mobilização para desmoralizar seus resultados?
Passarão a ser mais uma fonte de informação para alimentar as conversas nas vésperas das eleições e divertir, um pouco mais do que antes.
Nada parece agora mais divertido do que as declarações de luminares dos institutos tradicionais dando como definida a eleição algumas semanas ou meses antes, como a de Carlos Augusto Montenegro, fundador do ex-Ibope, hoje Ipec, no início de setembro:
— A campanha demorou quase dois anos. Mas acabou. Falta o eleitor pôr o voto na urna.
Deveria, com seus amigos na imprensa, pedir desculpas aos institutos menos votados, ignorados ou mesmo achincalhados, como PoderData, MDA, FSB, MDA ou Paraná, que vinham identificando a tendência de crescimento de Bolsonaro e chegaram às vésperas mais distante do vexame.
Varrendo as instituições
Eleições em geral desmoralizam algumas verdades, tradições e instituições de formação de opinião, mas a de 2022, sob a força da internet, impressiona por varrer algumas das que pareciam mais consolidadas até os pleitos passados. Além dos institutos de pesquisa, pela ordem:
1 - A grande imprensa, que não conseguiu em nenhum momento impactar os resultados das pesquisas, com notícia, análise e fatos como sabatinas e debates. Ela produz a notícia, mas não tem mais qualquer poder sobre sua repercussão e seu uso. Alguns podcasts têm mais audiência e influência, em determinados momentos, que o Jornal Nacional.
2 - A pajelança de artistas e celebridades, os outrora conhecidos "formadores de opinião", em favor de um candidato. Minha opinião é que atrapalha. Inclusive sobre uma sociedade conservadora que os acha vinculados a conceitos mais elásticos de família, religião e comportamento. Um anônimo reacionário na internet pode ter tanto ou mais poder que qualquer deles. Caetano Veloso e Chico Buarque soam anacrônicos.
3 - Os sindicatos e partidos políticos de militância tradicional. O PSDB virou pó e não só porque seu candidato em Minas teve menos de 1% dos votos e luminares como José Serra em São Paulo e João Leite em Minas não se elegeram. (Pelos sindicatos, Paulinho da Força não se elegeu em São Paulo.) O PT se arrasta, com seus candidatos mal posicionados na maioria das disputas pelos governos estaduais, com raras exceções no Nordeste. Seu expoente, Fernando Haddad, é uma bola de ferro.
Não é nenhuma coincidência que campeões de carroçada de votos sejam tipos exóticos que passam longe de partidos e do radar das mídias tradicionais. Como os Janones, Joices e os Bolsonaros sem partido em 2018, agora Cleitinho e Nikolas, deputado e vereador de primeiro mandato, eleitos respectivamente senador e deputado federal mais votado do país.
O radar baixo de Bolsonaro
O fiasco dos meios tradicionais de formação de opinião pública coincide com a força de Jair Bolsonaro, se não for ele causa e consequência. Foi o fundador no Brasil da ação política fora do radar dos meios tradicionais, a ponto de conseguir a mágica inacreditável de parecer anti-sistema, sem sê-lo.
Seu eleitorado vota plenamente convencido de que é o messias contra a conspiração dos outros poderes. Os institucionais, como o Congresso e o Judiciário. Ou os informais, imprensa, sindicatos, indústria cultural. É, para ele, o grande defensor da Tradição, da Família e da Propriedade.
A eleição de primeiro turno provou sua força avassaladora, não por acaso na classe média para cima, de celular à mão. Comeu parte do Norte e arrastou do Centro-oeste ao Sul, passando pelo Sudeste. Só não entrou na
muralha lulista que é o Nordeste
Fez os governadores dos estados mais importantes, um bloco de 270 deputados da direita (incluindo 99 só do seu partido) na Câmara e uma impressionante bancada de 20 senadores altamente afinados com suas crenças. Seus inimigos disfarçados ou nem tanto, Rodrigo Pacheco e STF, que se cuidem.
É tão forte que não perdeu nada ao deixar aliados bons de voto pelo caminho (os campeões de 2018, Joice Hasselmann e Alexandre Frota, viraram pó) e se dar ao luxo de trabalhar contra seus próprios favoritos. Quase atrapalha o jogador Romário de levar o Senado pelo Rio de Janeiro ao pedir voto para o brucutu Daniel Silveira, como provocação ao STF que o prendeu.
Quem não estava com ele, teve que estar com ele se não quisesse afundar. Emblemático o caso de Sérgio Moro no Paraná, ameaçado pelo favoritismo de Álvaro Dias e o potencial do bolsonarista Paulo Martins. Salvou-se por ter engolido o orgulho e se vinculado a ele na reta final, como símbolo de interesses comuns contra o petismo.
É um reflexo incontroverso de uma força de centro direita que está devidamente instalada sob sua liderança indiscutível, agora com status de fenômeno social. Vai ter peso considerável nos rumos do país, ajudando ou atrapalhando os próximos governos.
É quase certo que, se eleito, Lula terá mais dificuldades com essa base do que Bolsonaro teria, ainda que não se despreze sua capacidade de articulação. Muito da nova base é mais ideológica que fisiológica. Pode não decidir voto, mas tem alta capacidade, inclusive online, de fazer barulho.
Independerá da liderança de Bolsonaro, caso perca e se candidate a um Donald Trump sem partido, assombrando como ele as próximas eleições. Essa base e sua base, já orgânica na sociedade, ganhou força própria que convém respeitar.
Mais bala no segundo turno
Em favor de Bolsonaro se diz que segundo turno é outra eleição. Em favor de Lula, que o segundo turno é sempre continuação do primeiro. Que o favoritismo de Lula, a 1,5% de metade mais um dos votos no primeiro, dentro da previsão dos institutos tradicionais, é meio indicativo de sua vitória a 30 de outubro.
Mas, a considerar que seja continuação, é preciso colocar também na conta que houve/há uma onda por Bolsonaro que virou a eleição em seu favor em São Paulo e arrancou os palanques de Lula em Minas e no Rio de Janeiro. Justamente nos três estados do perigoso triângulo das bermudas das eleições presidenciais brasileiras.
Lula vai ter que ampliar seu leque de apoios, sabe-se lá onde, depois de ter arrastado todo o centro influente, mas não o Centrão que pode continuar com Bolsonaro diante dos novos dados. Fazer mais do que os artistas cantarem o Lula-lá na propaganda eleitoral.
Precisará ressuscitar a propaganda que mais funcionou no primeiro turno, a negativa que realça o pior da personalidade agressiva de Bolsonaro. Com mais competência, porém, porque uma das mágicas do segundo turno é tornar superadas as mágicas do primeiro.
Não é difícil que consiga mobilizar a parte das classes média e alta que lhe é hostil, mas não se desconsidere que Bolsonaro também terá mais tempo de conversar com as mais pobres, como já anunciou que fará no pronunciamento de domingo.
Do ponto de vista de hoje, muito em face do calor de sua vitória política no domingo, é Bolsonaro que está com mais bala na agulha.
Minha história na despedida
Meu filho de nove anos costuma acordar falante como dorme, querendo discutir antes do café da manhã alguma grande ideia que teve pela madrugada sobre animes, mitologia grega ou, como neste domingo, Revolução Francesa, que anda estudando na escola.
Me pergunta qual meu herói preferido da História real. Digo sem pensar muito em Winston Churchil, tento explicar mais ou menos sua importância contra Hitler, mas ele já se adianta e diz que prefere Napoleão Bonaparte e, em segundo lugar, dom Pedro.
— Os dois Pedros, para dizer a verdade. Prefiro o da Independência ou Morte.
Teve pela madrugada um insight revolucionário de que a História pode ser tão emocionante, com a vantagem de ser real, quanto seus jogos eletrônicos, a que dedica boa parte do dia. Já criou enredos, heróis e uma série para os quais considerou contratar colegas na dublagem.
Digo que história, a real, é de fato muito legal, e aproveito para ensinar que, no domingo, por acaso, estávamos vivendo uma que ele viria a ver um dia em seus livros escolares. Que ela, quando está sendo vivida, tende a não parecer ser tão extraordinária quanto nos livros e nos filmes.
E que assim é até melhor. A distância do tempo ajuda a aparar os excessos de amor e ódio que atrapalham o julgamento honesto de nossos contemporâneos. Lá na frente, quando ele tiver condições de entender, verá que os dois principais protagonistas da mais concorrida eleição de todos os tempos de nossa história deram, cada um a seu modo, sua contribuição ao país.
— Não é só que Lula rouba e que Bolsonaro mata, né, pai?
— Isso.
— Você quer ir votar comigo?
— Não.
Aproveito para fazer minha propaganda pessoal. Que os escritores e jornalistas vocacionados a historiadores como eu são tão importantes quanto os que a fazem. E que um dia ele poderá ler um livro meu a respeito ou consultar os artigos da coluna que mantive aqui no Estado de Minas, até essa terça-feira, de que me despeço.
Não sem um bom pesar, estou me desligando desse compromisso para, entre outras coisas, me desintoxicar de política e me dedicar a projetos literários e de historiografia que vinha adiando, lutando contra a urgência que o avanço da idade impõe.
Entre outras coisas que a idade também explica, pesou também o fato de que, dez anos depois de colaboração por aqui, em dois períodos, sinto que nada mais tenho a acrescentar.
Tenho alta perspectiva de que continuaria me repetindo sobre temas, ações e posturas de nossos políticos, como a relação inevitável com o Centrão, que tendem a se repetir tediosamente, desde sempre e por todo o sempre.
Faço minhas despedidas com esse artigo, agradecendo de coração sua paciência, sua atenção e seu respeito, mesmo quando divergindo de minhas opiniões.
Um agradecimento eterno especial a meu editor e anfitrião master, Benny Cohen, na liderança da equipe que sempre tratou minha produção com o cuidado, o carinho e o respeito profissional que me devotam. Muito obrigado de novo a todos e até.