Contas públicas

'Donos do orçamento' comprometem o ajuste fiscal

Gastos vinculados com saúde, educação, limpeza urbana, Legislativo, dívida e precatórios consomem 64% da receita da União, dificultando partilha de recursos que sobram, após busca de equilíbrio do caixa

Raul Velloso
Aprovação no Senado da reforma da Previdência, que não saiu do radar do ajuste fiscal, porque ainda tem de ser feita nos estados e municípios - Foto: Valter Campanato/Agência Brasil 1/10/19

Aproximando-se o final do processo de aprovação da Reforma da Previdência, o governo se prepara para anunciar um pacote de medidas que ainda não se conhece direito, envolvendo tanto matérias de natureza tributária, como mais uma vez tentando atacar o lado dos gastos.

Na Previdência, infelizmente, a coisa não está tão boa como se pensa. Espera-se que a tal PEC Paralela, imaginada originalmente que foi como atalho inteligente para estender a reforma oriunda da Câmara aos Estados e Municípios, seja ao final abandonada, pois lá não se conseguiu ambiente político favorável para fazer tal extensão. O temor é que se consolide como algo contendo medidas completamente desidratadas na parte aprovada anteriormente pela Câmara, indo, portanto, na direção oposta.

Aqui, cabe lembrar que o déficit previdenciário, que explodiu recentemente, é mais pesado no regime próprio dos estados e municípios (especialmente nos primeiros) do que no da União. Assim, se a Previdência é um grande problema e a solução é liderar o ajuste pelo lado dos entes subnacionais, é preferível que cada um tente aprovar na sua casa uma reforma parecida com a que se aplica à União, do que se ter uma reforma extensiva a eles, mas fortemente desidratada. A dureza do problema enfrentado por estados e municípios haverá de induzir seus dirigentes a trabalhar mais para sua aprovação local, tendo como referencia o que tiver sido aprovado na União.

Há, contudo, vários outros pontos a ter em mente quando se pensa numa nova rodada de medidas de ajuste. Um deles é que o orçamento público é cheio de “donos” poderosos, que precisam ser levados devidamente em conta, na hora de formular e aplicar uma política de ajuste. Sendo “donos”, é muito difícil mexer com sua fatia no bolo orçamentário. Dados os “donos”, a ocupação do espaço remanescente pelo gasto previdenciário (pois os efeitos das reformas demoram a aparecer) deixa o ente público praticamente sem qualquer gás para investir.

Acabo de rever um caso que estudei anteriormente de uma prefeitura de capital onde em saúde, educação, limpeza urbana, Legislativo, dívida e precatórios, itens extremamente rígidos comandados por virtuais “donos do orçamento”, se gastaram 64,3% da receita total.
Em pessoal e outros custeios do Orçamento Discricionário, 24,9%.

Ao final, somando uma receita de capital residual de 1,4% do total à sobra anterior de 10,8% da receita, o município ficou com 12,2% do total para pagar a conta de inativos e pensionistas de 8,5%, e sobrar alguma migalha para investimento: algo ao redor de 3,7% do total.

Uma avaliação da situação de vários estados de peso econômico elevado produziu resultados muito parecidos, ou seja, dados os “donos” e a crescente conta da Previdência, especialmente agora com a atual carência de receitas causada pela brutal recessão, a margem para investir tende rapidamente a desaparecer.

Não é por outro motivo que, conforme mostram dados levantados pela IFI-Senado, os investimentos totais de estados e municípios acabam de retornar aos níveis médios dos anos 40! (Falo de algo hoje ao redor de 0,3% do PIB anuais).

Nesse mesmo contexto, concluo chamando a atenção dos leitores para a queda na disponibilidade de recursos para investir na União. Conforme calcula o próprio governo, a disponibilidade de recursos do Orçamento Discricionário, que faz contraponto aos “donos do orçamento (pois lá também tais donos existem, igualmente obesos e poderosos)” vem caindo celeremente, tendo passado de R$ 200 para 50 bilhões em apenas 6 anos (2015-2021), usando projeções oficiais para 2019-21.

Dá para viver sem investimento público? Numa certa medida, sim. Mas não tanto, a ponto de eles tenderem a zerar em breve em todas as esferas de governo. Especialmente agora que administrações como a municipal do Rio cometeram a violência de derrubar as praças de pedágio da importante artéria conhecida como Linha Amarela, a maior já perpetrada no país por um Poder Concedente local, com consequências desastrosas para a atratividade dos investimentos privados em infraestrutura no Brasil.

Há sinalizações de que o governo pensa em juntar as vinculações de receita à educação e saúde, permitindo redistribuição de recursos entre esses segmentos, mantido o total. Inventei em 1995 o que hoje se chama DRU, um fundo que passou a receber 20% de receitas amarradas, para serem redirecionados a outros usos, inclusive não gastar. A reação dos “donos” não impediu a aprovação da DRU no Congresso, simplesmente porque eles não perceberam o alcance da medida. Tentar hoje algo desse tipo dificilmente funcionará. Sendo assim, algo mais além da atual reforma terá de ser feito na própria previdência, item de maior peso no gasto.

Segundo as autoridades também noticiam, o governo cogita ainda de adotar medidas de ajuste mais agressivas, emergenciais e temporárias, como a redução do número de horas de trabalho, para momentos de dificuldade financeira aguda. Com a palavra  “os donos do orçamento”. 
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