Tenho dito ao ilustre conterrâneo e senador piauiense Wellington Dias que Lula deve agir para acalmar a inquietação dos desconfiados mercados financeiros na questão fiscal, onde, além dos problemas estruturais e antigos, há o grande desarranjo promovido pelo governo que sai ao tentar se reeleger. Não se trata de recriar o famigerado teto de gastos, à la Meirelles, nem obviamente de penalizar os mais pobres via desindexação à la Paulo Guedes, mas é preciso escolher um item de peso na composição do desequilíbrio nas contas de todos os entes públicos para arrumar em uma perspectiva de médio prazo (isto é, de forma duradoura e certa), e em que ele possa envolver basicamente todos os governadores e boa parte dos prefeitos na primeira reunião que com eles tiver sobre o assunto.
O alvo a ser escolhido se chama previdência, algo em que apenas um ou outro já está progredindo (o Piauí, graças a Wellington, é um deles), e particularmente a dos regimes próprios de servidores, exatamente o item da pauta comum de gastos que mais cresceu especialmente de 2006 para cá, e que caminha para causar a zeragem do espaço financeiro para os indispensáveis investimentos públicos em infraestrutura. Sem estes o PIB não cresce, e com eles até a distribuição de renda melhora. Por isso têm um peso tão alto na pauta inicial, e daí a razão de me preocupar tanto com eles.
De passagem, dever-se-ia aprofundar o processo de reforma dos gastos do INSS, em curso, que teve um bom avanço na reforma promovida há pouco (2019), mas que tem passos conhecidos a trilhar. E não se trata de massacrar os beneficiários desses regimes todos, mas de criar as condições para, em um passo a passo razoavelmente conhecido, e ao longo dos anos à frente, torná-los viáveis e, ao mesmo tempo, abrir espaço para o país investir e crescer mais. Dessa forma, os mercados podem ler os sinais corretos à frente e relaxar...
A propósito, enquanto os gastos do regime geral (INSS) aumentavam, em termos reais, a não menos que 5,1% em 2006-20; os do regime próprio federal de servidores a 3,1% em 2006-21; os dos regimes próprios estaduais à média de 5,9% em 2006-18; e, finalmente, os dos entes municipais, à chocante taxa real média de 12,5%, em 2011-18, então, e sem espaço nos orçamentos, os investimentos desabavam, e o PIB crescia, em média, a apenas 1,6% ao ano em 2006-21.
A principal consequência disso, não custa enfatizar, foi a desabada dos investimentos públicos totais em infraestrutura, que caíram 9 vezes quando medidos em % do PIB, comparando-se o final da década de 1980 com os últimos anos. Esse é um problema de prazo longo que, como tal, deve ser tratado, mas que requer um diagnóstico inicial bem elaborado, para não sairmos do curso certo. Curso esse que precisa ter uma dimensão adequada de tempo, mas também passar a sensação de que o problema, a partir de um certo momento, estará sendo resolvido.
A primeira ideia que surge é a de calcular uma alíquota extraordinária sobre a folha de pagamento que o ente público teria de enfrentar por um longo período para zerar esses déficits. O grande drama aqui é que, em função dos volumosos déficits atuariais que já estão aí, tende a ser inviável que o valor da alíquota extraordinária seja absorvido pelos sufocados orçamentos públicos dos dias de hoje.
Diante da inviabilidade da alíquota extraordinária, o passo seguinte é conceber e implementar uma reforma relevante de regras, até porque as regras da Emenda 103/19 não se estenderam automaticamente aos demais entes além da União. Na sequência, existe hoje a figura de um fundo integrado de bens, direitos e ativos, a partir do qual se pode implementar um processo conhecido como monetização de ativos, que contempla o aporte e posterior liquidação desses itens de propriedade do ente público que possam ser vinculados adicionalmente à previdência, e, assim, servir de receita extra para ajudar na viabilização do citado equacionamento.
No Piauí, aprovou-se uma reforma de regras até mais profunda do que a da União. Para o processo de financiamento do equacionamento previdenciário, a saída é a capitalização gradual do regime previdenciário, separando-se a massa de segurados em dois planos, um deles sendo um plano capitalizado, em que se procura fundar reservas capazes de cobrir as despesas com os benefícios que serão pagos para o grupo de pessoas que a ele for vinculado (normalmente servidores ativos recém-admitidos no ente e aposentados e pensionistas mais idosos).
Já o outro plano é estruturado para continuar o financiamento do modelo denominado de repartição simples, em que as contribuições oriundas dos segurados e do ente federativo financiam as despesas com benefícios não ocorrendo a constituição de reservas. Essa estrutura de equacionamento do déficit prevê a extinção do plano financeiro ao longo do tempo, efetuando-se revisões dos parâmetros usados para definir cada fundo, na medida que o fundo capitalizado apresente os resultados positivos que possibilitem a recepção de segurados oriundos do plano financeiro. Com a adoção de medidas como essas até aqui, o Município de São Paulo conseguiu reduzir o déficit atuarial de R$ 171 para R$ 74 bilhões, e o Piauí, de R$ 36 para 8 bilhões, em 2021. Viva ambos!