É óbvia a morte prematura do chamado “teto de gastos”, adotado por Temer e Meireles, a suposta âncora fiscal com que, desde 2016, se vinha buscando conter o crescimento anual dos gastos públicos totais da União pela inflação decorrida, basicamente para frear a própria ameaça inflacionária – e outras mazelas que vêm junto – que supostamente sempre assolam o país quando o gasto público cresce além de certo ponto. Ninguém quer reconhecer isso, mas ela está deixando órfãos analistas e operadores a serviço do mercado financeiro que acreditavam piamente nessa miragem, e se dedicam, agora, cobrar um substituto próximo.
Lula, que pode ser tudo menos bobo, deve ter percebido que o teto nasceu letra morta, e de lá pra cá vem, para desagrado de muitos, contestando essa e outras teses caras aos pró-mercado, como, por exemplo, a imposição da independência formal do Banco Central como outra peça-chave do arsenal anti-inflacionário. Com apoio nela, e fixada uma meta de inflação, o todo-poderoso presidente do BC teria autonomia para subir os juros sempre que concluísse que a meta de inflação estaria ameaçada.
Mesmo que um controle tipo teto fosse capaz de controlar a inflação, minha percepção é de que, com ele, Temer e Meireles teriam chegado algo entre três e quatro décadas atrasados na corrida anti-inflacionária. O ponto é que, de 1987 pra cá, a estrutura do gasto não financeiro federal, aquele cujo crescimento se busca conter, foi ficando tão fortemente enviesada na direção de apenas dois itens difíceis de mexer, previdência e assistência social, o primeiro super-rígido e o segundo superprioritário (e, portanto, também super-rígido), que qualquer medida desfocada tipo teto só produz uma redução ainda maior dos demais itens, estes há muito caminhando para a zeragem final.
Para confirmar minha dedução, bastaria examinar, com atenção, a estrutura do gasto da União em 2021, e como ela se compara com a que se verificava por volta da edição da última mudança constitucional de peso, ou seja, a de 1987, passados não mais que 34 anos, algo a que, pressionado de todos os lados, o atual governo ainda não se dedicou com afinco, como se vê nas entrevistas de autoridades da área.
Isso mostraria que, de lá pra cá, o item somando previdência mais assistência aumentara de 28% para 68% do total, sendo previdência, sozinha, responsável pelo aumento de 19% para 52%, algo realmente chocante... Enquanto isso, o peso do item investimento público em infraestrutura se reduzia de 16% para 2% do total, esse, sim, um resultado ainda mais preocupante! Ou seja, de um lado, viramos um país de aposentadorias bancadas por todos os governos, pois essa mesma estória se mostra em mais de 20 estados e 2.000 municípios. E, do outro, o setor público como um todo, que sempre foi o grande investidor em infraestrutura, parou de fazer isso, pois outro levantamento demonstra que, do final dos anos 80 pra cá, a razão investimento público em infraestrutura/PIB caiu 9 vezes, e com ela o PIB, cujo crescimento, nas duas últimas décadas oscilou em torno da média zero.
Lula já disse que, se puder escolher, preferirá se dedicar à retomada do PIB e ao apoio aos mais pobres do que a cumprir a meta de inflação. Ele talvez esteja certo. Mas precisa correr rapidamente atrás do prejuízo, e fazer a coisa do jeito certo, pois a cobrança sobre o tema equilíbrio fiscal é desproporcionalmente pesada, e Lula sabe disso, pois recebe as pedradas. Mesmo sem ter o diagnóstico correto, a maioria exige uma nova “âncora fiscal” imaginária, de aplicação supostamente simples e rápida, tipo o mesmo teto de gastos, ainda que totalmente ineficaz, ou saídas como a recomposição da tributação sobre combustíveis, esta superindigesta politicamente, e ponto.
Em vez disso, Lula deveria, então, comandar o equacionamento do maior buraco de todos, ou seja, o das contas previdenciárias, não só diretamente na União, como também nos demais entes, o que está sendo feito lenta ou precariamente, com exceção de um caso que poderia virar o exemplo a seguir. Refiro-me ao caso do estado do Piauí, em que Wellington Dias, ex-governador e atual ministro de Lula, deixou a execução bem avançada para seu sucessor, limitando-se, pasmem, a obedecer à exigência que hoje está até inserida na própria Constituição (no §1º do artigo 9º da Emenda Constitucional 103, de 12 de novembro de 2019), de isso ser feito.
Esse tipo de trabalho não é simples, nem de execução rápida. Mas o resultado final é certo. Os déficits previdenciários cresceram de tal ordem que o espaço que será ganho nos orçamentos, ainda que leve os 4 anos dos atuais mandatos, será a garantia de que a dívida pública não terá crescimento descontrolado. Além disso, o desgaste político para completá-lo é, pasmem, administrável, como vi no caso do Piauí. Só falta dedicação e garra para executá-lo. Além de ajudar na tarefa a cargo da União (que está mais atrasada que os demais), Wellington Dias poderia ajudar a coordenar a atuação dos governadores e principais prefeitos, mostrando o que fez em seu estado e a elevada dimensão dos ganhos que podem ser obtidos.