Com todas as dificuldades que o setor público vem enfrentando para administrar suas contas na última década, o resultado primário consolidado (que exclui os juros na apuração da despesa) acabou sendo divulgado como superavitário em 1,3% do PIB em 2022, após vários anos em que déficits eram registrados, em função do que, ao lado de outros fatores, derivou-se uma razão entre a dívida pública e o PIB de 73,5%. Número absurdamente alto?
Na verdade, visto isoladamente, não, principalmente se considerarmos que esse tipo de cálculo tende a superestimar bastante o que se está tentando medir, pois o que se faz é dividir um estoque (a dívida) por um fluxo (o PIB). O ponto é que há outras formas mais adequadas de medir o mesmo fenômeno sem, contudo, superestimá-lo. Por exemplo, teria de ser só variáveis-estoque ou só fluxos. Seguindo-se esse caminho, sairiam valores bem menores e, portanto, menos preocupantes.
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Melhor regra é o correto ajuste do gastoMorto o teto de gastos, é preciso equacionar gastos previdenciáriosEquacionar a Previdência para ancorar o lado fiscalO benefício da dúvida do governo de um presidente preocupado com desafetosComo o teto de gasto se torna regra simplória no momento atualNa verdade, o incômodo principal desse tipo de divulgação foi, primeiro, o de Lula, que, como presidente da República, tem todo o direito de chiar, e, depois, de vários macroeconomistas (nos quais me incluo), todos preocupados com o efeito devastador sobre o nível de atividade econômica que o elevado valor da taxa de juros nominal de referência que estava “por trás das cortinas”, de 13,75% a.a. (da qual se deriva uma taxa real de 8% a.a., se descontada a expectativa média de inflação), que o Banco Central vem praticando há um tempão, em que pese a clara tendência declinante, de último, da inflação vigente tanto no mundo desenvolvido como por aqui. Ou seja, mesmo com a dívida pública aparentemente sob controle, os juros altos que são praticados, muito provavelmente sem necessidade, têm um alto custo em termos de baixo crescimento da atividade econômica e do emprego.
Nessa área, conforme o conselho simples que deveria ser seguido, nunca se deveria fixar a taxa de juros real – que hoje, como dito acima, se situa em 8% a.a. – acima do crescimento esperado da economia – no caso, apenas 1,53% a.a., em média, em 2023-26, segundo as expectativas de mercado levantadas na data de hoje pelo próprio Banco Central. Se a taxa de juros real, ao contrário, fosse sempre menor, a razão entre a dívida pública e o PIB se estabilizaria à frente, criando-se mais confiança na gestão fiscal do país.
Nada obstante, sendo muito exigentes com a avaliação das contas fiscais do Brasil, o que os mercados financeiros locais mais alegam para manter juros altos é exatamente o supostamente elevado risco fiscal. Por mais que se avalie que o Brasil não tem por que quebrar, ou seja, não tem um risco fiscal tão alto assim, a tarefa do ministro Haddad é nada simples. Além de enfrentar os xiitas de mercado do lado de cá, a impressão ruim que é passada para os de fora do país leva a uma busca constante de uma nova âncora fiscal que dê conta de esfriar as expectativas desfavoráveis que pairam sobre nossas cabeças.
Voltando ao nosso dia a dia, e tendo aceito que a última âncora tentada, o teto de gastos, faliu, corre-se trás, desesperadamente, de uma nova âncora para combater a ameaça permanente de crise fiscal, e aqui e ali começam a aparecer, na mídia, alguns candidatos, até agora, a meu ver, nada fortes. Temo que caiamos na mesma esparrela do teto, que, em poucos anos, foi violentado várias vezes. E penso que, agora, teremos de acertar de primeira.
Por que o teto fracassou? Ninguém se deu conta de que, em 2021, 96,9% do gasto da União correspondia aos ditos gastos obrigatórios, ou seja, pendurados na Constituição e dificílimos de alterar. Já os residuais gastos discricionários, notadamente os investimentos em infraestrutura, obviamente foram levados a desabar, e, nesse ano, esse último item ficou com apenas 2,2% do total, sendo o principal alvo do ajuste até os obrigatórios abocanharem quase tudo.
Que itens mais cresceram? Previdência e assistência social. Passados os 34 anos entre 1987 e 2021, o gasto com o primeiro item aumentou de 19,2% para 51,8% do total, uma obrigação que os governos assumem para não deixar na mão os idosos do seu próprio regime e do regime geral, este mantido pelo INSS. Enquanto isso, o segundo, que tem sido a prioridade número um dos governos há muitos anos por razões óbvias (inclusive para Lula), passava de 9,1% para 16,4% do total. Os dois juntos pularam de 28,3% para 68,2% do total. A saída, então, é um grande esforço conjunto de zeragem dos déficits previdenciários não só da União, mas também dos demais entes, até o final destes mandatos, conforme inclusive já manda a Constituição (inciso 1º do art. 9º da EC 103, de 12/11/19), onde, nos outros entes, o problema é o mesmo e costuma ser transferido para a matriz.
Isso se fará via mais reformas de regras, criação de fundos de previdência e aporte de ativos nesses fundos, como há muito se sabe. O dinheiro economizado na redução e eventual eliminação dos déficits deve ser direcionado basicamente para assistência social e investimento, este já tendo desabado nove vezes dos anos 80 para cá, quando medido em % do PIB. (Potencialmente, poderia até ser simplesmente economizado...) E que Lula chame o Wellington Dias para coordenar esse trabalho, pois ele já aprendeu a fazer boa parte do dever de casa no seu recém-findo mandato no Piauí.