Além da pandemia, do isolamento, de sermos obrigados a usar máscaras, de ficar com medo do contágio e quase que diariamente saber dos números de tantas mortes, próximas ou não, ainda por cima sofremos com a crueldade humana. Esta não nos dá folga nem nas piores horas.
Pergunto-me se ainda somos humanos ou se nos tornamos pessoas indiferentes, afetivamente anestesiadas, nos defendendo diariamente da grande carga que recebemos de informação. Dizia Freud que o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. E vejo que ela reina. As pessoas não se importam com o outro mais do que querem garantir suas verdades.
Verdades às quais se agarram com fé absoluta desacompanhada de qualquer lampejo racional. Ora convenhamos, o homem retorna à condição irracional. Não mede consequências, não pensa nos danos que possa causar. A tal da Sara Winter, completa desequilibrada, encontra eco em seus pares. Só os iguais concordam com tanta insanidade e admitem invadir a privacidade alheia com tanta estupidez.
E o pior é que, utilizando a religião, afirmam falar em nome de deus. Com minúscula, ouso dizer, pois não vislumbro Deus, com maiúscula, em suas ações. Dizem-se cristãos. Mas o caro leitor consegue ver Jesus fazendo vigília em torno de um hospital para demonizar uma criança de 10 anos submetida a abusos continuados?
Deveria dar à luz o fruto do abuso, em seu corpo de 10 anos de idade, sem correr riscos contra sua própria vida e para sempre carregar nos braços a prova de tudo que mais quer esquecer? Enfim, a polêmica é grande entre opiniões. Porém, o amor deveria ser maior.
O que diria Jesus? O que faria Ele? Pelo que sabemos de sua história, proporia que aquele que nunca pecou atirasse a primeira pedra naquela que ali condena. Não entro no mérito. Entendo que mesmo errando o sujeito faz o que dá conta e cabe a ele decidir sobre seu desejo; e se deve prestar contas a alguém sobre seu ato é a si próprio. E a Deus se ainda restar fé. Alguma fé, seja na humanidade do homem, seja no divino.
O que mais poderia lhes dizer é que essa criança não contou com a proteção dos pais, em seu abandono de incapaz não teve defesa, foi submetida a crueldade extrema e carregará marcas indeléveis desses momentos traumáticos sofridos com um tio perverso.
A marca do desamparo e do medo, que está em todos nós, será ali naquela criança muito maior. Desamparo e medo serão seus parceiros e, talvez – torcemos para isso – ainda lhe reste saúde mental suficiente para se reerguer. Com a ajuda de pessoas capazes, especializadas em lidar com essa situação, terá chances maiores. Nunca duvidemos da capacidade de recuperação que algumas pessoas podem encontrar em si.
O segundo momento de crueldade assistido, além de tudo isso que o coronavírus nos tem imposto, foi a desapropriação violenta em Campo do Meio, do acampamento de 450 famílias que ali estão há 22 anos, com a destruição pela Polícia Civil de uma escola e seis casas. Felizmente, conseguiram detê-los.
É o retrato de nossa sociedade adoecida. Em plena pandemia, ignorada pelas autoridades e mandatários, como igualmente ignorados foram os seres humanos ali envolvidos. Serão eles considerados dejetos a serem descartados de qualquer maneira? Sem uma alternativa, sem uma ação do Estado na administração desse conflito?
Foram tratados como animais, tocados para a natureza, sem alternativas, sem propostas, sem solidariedade. Não pensem que concordo com invasões, mas elas acontecem pela incompetência humana de levar em conta a miséria do outro e fecha os olhos para as necessidades alheias tanto quanto para desigualdades imensas.
Concordo com o escritor Antonio Prata quando diz, em seu artigo de domingo passado na Folha de S. Paulo, que é tanta notícia, tanta informação e um exercício constante para nos inteirar sobre tudo, que seria melhor pitar um cigarrinho de palha olhando pro tempo lá em Quixeramobim.