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Até quando Ângelas e Marielles serão sacrificadas impunemente?

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Nem um dia sequer falta aos jornais e à mídia matérias sobre agressões e crimes contra as mulheres. Os índices de ocorrências estão crescendo no Brasil. É surreal. Como podemos entender este ódio vindo do que antes foi declarado amor? O ódio é a outra face do amor. Duas paixões contrárias e inseparáveis como páginas de uma folha.





A campanha “Quem ama não mata”, lançada há 40 anos, foi criada como resposta aos frequentes atos de violência contra a mulher, como o crime da Praia dos Ossos, em 30 de dezembro de 1976. Ainda me lembro o horror causado pela perda da bela e fascinante Ângela Diniz.

Mineira de Belo Horizonte, mulher livre e moderna, sua morte abalou toda a sociedade. Nos três anos que se seguiram ao crime e julgamento, Doca Street, de réu confesso e criminoso, passa a vítima pela manipulação preconceituosa da opinião pública.

A comoção foi geral. O profundo lamento concorria com a crueldade de culpar a vítima. Ora, ele teria lavado sua honra... Triste e falsa alegação, já que a honra e a masculinidade de um homem não podem ser provadas pelo domínio de sua mulher, mas do seu caráter.





O público feminino na última semana se alegrou ao escutar o primeiro episódio da série Praia dos Ossos, lançado pela Rádio Novelo, resgatando a história de Ângela e do julgamento equivocado, preconceituoso e machista da época.

A série devolve a ela, apontada como vilã e culpada, seu verdadeiro lugar de vítima e dá o justo lugar ao criminoso. Ainda que tardiamente, alguém fala com decência sobre o crime. Recuperar esta história é extremamente importante, não podemos mais suportar tanta desumanidade. Ângela Diniz foi morta por quatro tiros disparados pelo namorado Doca Street, que fugiu do flagrante e quase nada pagou por seu ato.

A produção de oito episódios, agora no segundo, pode ser escutada aos sábados no canal da Novelo Novo no YouTube e no podcast da Spotify. Dirigida por Branca Vianna e Flora Thomson-Deveaux, num trabalho primoroso e incansável, apoiado em 50 entrevistas, 80 horas de material gravado e milhares de páginas de bibliografia. É um sucesso que faz jus à memória de Ângela e representa todas as mulheres brasileiras sujeitas ainda à mesma inaceitável violência em ritmo crescente.





E nos faz perguntar até quando Ângelas e Marielles serão sacrificadas impunemente? O amor e o desejo migram. Passeiam entre objetos buscando satisfação. O amor é contingência, acontece ou não, permanece ou não.

Ninguém manda no coração. Sofremos por isso. Em matéria de amor, somos sempre como as crianças, acreditamos demais no amor. Devemos dar crédito ao amor, saber desfrutar dele. Saber também que, quando nos apaixonamos, adentramos uma situação de risco. E no jogo do amor há regras. Em que, a cada rodada, há a aposta e o risco de ganhar ou perder.

Sabendo, entramos, desfrutamos, amamos e gozamos as delícias do amor, do corpo do outro, de sua presença. Mas, apaixonados, enlouquecemos nesta fé absoluta e obstinada. O anseio de completude é ilusão que insiste, faz repelir nossa condição: jamais haverá uma fusão completa que nos torne um com o outro. O insuportável desta verdade produz o ato violento. Nada queremos saber sobre o abandono. Mas não temos direto à violência.

O tempo não apaga as injustiças do passado. Não podemos esquecer. Não podemos deixar morrer o desejo de um mundo em que as mulheres não sejam discriminadas, espancadas, estupradas e assassinadas. O mundo nunca foi justo e ainda não é, talvez nunca seja. Mas não nos conformemos.

A história de Ângela é um ícone da impunidade e hoje, graças ao trabalho primoroso da Novelo Novo, faz-se justiça pela palavra. Retira do esquecido a Pantera de Minas. Ela vive outra vez em todas as mulheres.