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Por que se anseia tanto a paz?

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Quantas vezes nos perguntamos sobre um mal-estar difuso, um aperto no peito, do qual nada sabemos dizer? Alguma coisa difícil de explicar, talvez aparentemente desmotivada, ronda a existência dos mortais, racionais, conscientes da finitude. Já sobre a experiência dos irracionais, guiados pelo instinto, e sua relação com a morte nada podemos dizer, e nem eles.





Freud acreditava que grande parte do mal-estar existencial estaria associada à morte no horizonte da vida. Não duvido. Pensar que a vida acaba é quase insuportável para a maioria. Então, devemos evitar encarar a morte e olhar para ela só de soslaio e rapidamente. Parar para pensar não é produtivo, de nada adianta pensar na morte da bezerra, como se diz por aí e digo mais, nem da boiada inteira.

Deve ser por isso que as pessoas anseiam tanto pela paz de espírito, esperam a harmonização, a plenitude. Espera-se por isso porque não se as tem. De fato, em entrevista com Clarice Lispector, Mariza Raja Gabaglia pergunta: “Você tem paz?”. Ela responde: “Nem pai nem mãe”. A outra insiste: “Eu disse 'paz'”, e Clarice: “Que estranho, pensei que tivesse dito 'pais'. Estava pensando na minha mãe uns segundos antes. Pensei – mamãe – e então não ouvi mais nada. Paz? Quem é que tem?”.

Lispector era apegada a histórias e mitos. Perdera sua mãe cedo e sua imaginação fértil funcionava bem, porém, não podia acreditar racionalmente na sua eficácia. Impressionada com a morte da mãe, contou uma colega, na escola escutara que não se podia deixar uma tesoura aberta sobre a mesa. Por isto sua mãe morrera, em casa alguém tinha deixado uma tesoura aberta na mesa. Vejam como a mente de uma criança pode criar explicações fictícias para tudo!

Dedicou sua vida a escrever até em suas últimas horas. Entendendo a impotência da atividade imaginativa demonstrada de forma implacável diante da dureza do real, continuava insistindo. A escrita era seu recurso, sua tática nas situações desesperadas. Em parte, era consolo e escrevendo podia conduzir a narrativa a um final feliz diante de uma realidade inflexível. O papel tudo aceita, o coração não.





A paz é cara e a harmonia somente pode ser possível quando sustentada por negações mantidas e compartilhadas. Exemplo. No conto do dinamarquês Hans Christian Andersen A roupa do rei, um foragido de outro reino conseguiu uma audiência com o rei e disse: “Consegui fazer a melhor de todas as roupas! Um modo de tecer que só pessoas inteligentes conseguem ver”. Vaidoso, o rei encomendou a sua.

O larápio exigiu baús de seda, pedrarias, linhas, agulhas de ouro e montou a alfaiataria. Quem passasse por ela via o “alfaiate” trabalhando com o invisível. Cortava o ar, costurava o nada e ali ia tecendo sua trama. E recebendo do rei... Os que passavam fingiam ver para não parecerem estúpidos. Por fim chegou o grande dia. O rei cansado de esperar mandou os ministros trazerem a roupa.

O falso tecelão então exibiu a roupa, a mesa vazia, e o rei exclamou: “Que lindas vestes, magníficas!”. Mesmo nada vendo, ainda assim, vestiu. Desfilou seu modelito apesar dos risinhos disfarçados, pois ele e ninguém se atreviam a mostrar-se sem inteligência. Apenas uma criança gritou: “O rei está nu!!!”. Há controvérsias sobre o fim da história, mas a conclusão é óbvia.

Pode-se acreditar no que quiser desde que se tenha fé absoluta, e grande capacidade de negação!