Esta pergunta cada dia mais circula em torno da humanidade. A ambiguidade como um pêndulo é capaz de, em segundos, nos transportar do melhor dos mundos ao inferno. Num piscar de olhos, a pulsão de morte nos abraça nos fazendo esquecer da vida. Ao mesmo tempo em que com uma mão fazemos tudo pela vida com uma palavra a esmagamos.
Com a mesma mão, plantamos e desmatamos. Amamos e devastamos. E assim caminha nossa humanidade nos deixando perplexos com a escalada da violência e também da solidariedade. São contrários e oposições que fazem a opinião e as posições se dividirem.
E esta divisão também existe em cada um de nós e nem sempre estão à disposição da consciência. Nem sabemos a proporção imensa da influência do inconsciente na vida cotidiana, porque nunca fomos instruídos para a sensibilidade de olhar além do concreto. De escutar o literal. Quando aponto um além, me refiro à alma. Somos mais que corpo.
Esta semana assisti ao recente filme “Je suis Karl” (2021), dirigido por Christian Schwochow. Pegando carona no “Je suis Charlie”, jargão que em 2015 em Paris se levantou contra o ataque terrorista ao jornal Charlie Hebdo por ofensas à fé islâmica em suas charges.
O filme aponta manobras dos jovens de extrema direita, se dizendo democrática, mas que repudia a presença de refugiados na Europa. Eles próprios simulavam atentados atribuindo a autoria aos estrangeiros e defendendo a raça pura e sua hegemonia na Europa.
O que nos deixa perplexos e admirados é a fineza como é exibido no filme: o autor do atentado se aproxima da sobrevivente e provoca um laço aparentemente forte e de solidariedade, envolvendo-a na campanha extremista, responsável pelo assassinato da mãe e dois irmãos.
Karl seduziu a sua própria vítima e, em seguida, sacrificou sua vida num atentado forjado contra si, tornando-se mártir com finalidade de fortalecer a causa. Muito fanático.
A identificação com a causa que gerou o jargão “Je suis Karl” (Eu sou Karl) é sinistra e nos interessa. Como disse semana passada, a identificação a um ideal, a uma causa, faz com que um indivíduo, um grupo de semelhantes, tome como seu o nome do outro e lute por ele até a morte. Muitas vezes numa luta irracional.
Esta causa torna-se motivo de vida e morte daqueles que não têm seu desejo decidido e ficam flanado em torno de uma demanda de amor, dirigida ao um outro que poderá salvá-lo de sua própria indefinição. O desejo de inclusão, de pertencimento, de proteção vinda de fora.
Na psicanálise, tratamos incansavelmente os traços do outro em nós e a nossa necessidade de aderir devido ao nosso desamparo fundamental, pois estamos soltos em um real incontrolável e é nossa determinação e desejo que nos mantêm de pé e com gana de viver.
Quanto à solidão, não a sofreremos tanto caso sejamos nossa boa companhia sem, é claro, dispensar nossos queridos, pois colorem nossos dias mais cinzentos. Não que dependamos deles, mas cientes de que os laços são importantes e valiosos e nos ajudaram a construir e inventar e reinventar a civilização e tudo que há de valor na vida.
Então nos cuidemos e não sejamos Charlie, nem Karl. Sejamos nomes próprios que se pautam na ética, em valores como respeito e dignidade humana, defendendo o mundo como um lugar de todos e para todos. Mundo de inclusão em que as diferenças acrescentem, somando mais do que dividindo. Este é o mundo que a psicanálise defende e é bonito!