Somamos esforços insistentemente em campanhas de conscientização e formação de opinião, mas mesmo assim certos preconceitos estão arraigados nas pessoas. Não nos damos conta do tamanho dessa impregnação.
Só percebemos o quanto vivemos em uma sociedade eivada de desvios e equívocos quando sentimos na pele ou quando alguém ou algo nos sensibiliza, nos tocando de modo que passamos a compreender e ficam claras nossas dores mal definidas.
Por mais que a mídia e as escolas transmitam racionalmente esclarecimentos e valores humanos como tolerância, respeito e solidariedade no intuito de tornar a sociedade mais justa e menos segregacionista, ainda assim o que fica latente em nós de nossa herança arcaica é enraizado na carne. São marcas na alma.
Espinhos na carne, os sentimos sem saber. Dor e mal-estar difusos e sutis que, sem que possamos pronunciar, permeiam nossas relações e, mais, nossas próprias posições.
Ainda será preciso muito trabalho e sensibilidade para perceber novas e outras possibilidades. Isto é, para sairmos do lugar que acreditávamos ser o nosso e escolhermos o desejo.
O conservadorismo permanece ativo em nossa sociedade. A homofobia, o machismo, o racismo e todo o tipo de exclusão das diferenças estão ativos. Isso fica claro nas estatísticas de violência de gênero, feminicídio, racismo e no cotidiano.
O machismo, por exemplo, é transmitido pelas próprias mulheres: filhas nos trabalhos domésticos, filhos machos alfa. Falocracia. Falando assim, parece que estamos no século passado e o feminismo não aboliu este comportamento. Não mesmo.
Ainda vigora a lógica perversa que não garante o direito ao respeito. As mulheres ainda se submetem, muitas toleram abusos físicos.
Quanto aos abusos psicológicos, muitas nem sequer sabem o que isso significa. Abusos tão sutis que nem os percebemos. Nos caem com naturalidade porque os aprendemos em família. Com um pseudorrespeito. Nossa sociedade ainda é alicerçada na hipocrisia e na dissimulação.
O terreno das relações amorosas e afetivas é nebuloso e embaçado quando não se trata de violência explícita, impedindo ver com clareza o que está sustentando implicitamente tais relacionamentos. Será preciso atenção para andar no fio da navalha, e nisso a série “Maid” (Netflix) é bastante reveladora. Devemos escolher a nós próprias, mesmo que isso implique em perdas. Serão perdas necessárias.
A mulher é capaz de travar suas próprias batalhas, além de se respeitar e manter a dignidade suficiente para botar no lugar correto aquilo que é seu direito. E não ceder. De modo silencioso e afetivo, sem medir forças e pacificamente ir adiante.
Essa situação, bem representada em “Maid”, convoca a mulher a repensar suas posições e buscar em si, no apoio mútuo e na solidariedade força para respeitar a si própria e a seu desejo. Deixar para trás aquilo que antes idealizávamos e nos parecia ser amor pode não ser fácil, mas é libertador.
Comentada por nove entre 10 mulheres com as quais tenho falado nos últimos dias, a série toca a sensibilidade e causa forte impacto pela nossa identificação com a personagem principal, Alex. Esta mulher, corajosamente, recusa todo o tipo de coação, supera relações de dependência afetiva e faz sua aposta, apesar dos obstáculos, no que acredita ser o seu lugar de contentamento, onde a vida lhe parece valer a pena.
Alex escreve sobre sua vida e seu trabalho e, em alguns momentos, me fez lembrar da nossa pobre e cara Carolina de Jesus em “Quarto de despejo”.