A perda foi enorme. E doeu. O Brasil parou por ela e agora vive o luto do falecimento precoce da jovem e talentosa cantora que inaugurou um estilo de música dirigido às mulheres. Cantando o que vivem e sofrem as mulheres, Marília Mendonça se tornou um fenômeno produzido pela circulação de novos significantes: sofrência e o feminejo.
Ela deu voz à falta que há no feminino. Sua capacidade de captar o silêncio e escutar as vozes femininas tocou corações e arregimentou multidões. Valente, enfrentou o mercado masculino do sertanejo. Uma mulher que enfrentou o mundo e viveu de sua música. Apostou alto e ganhou.
Aos 26 anos e com um filho de 1 ano e 11 meses, sua morte súbita causou comoção nacional e internacional. Seu estilo criativo e inovador, a partir da identificação com o sentimento comum, promoveu um laço entre as mulheres. Propõe solidariedade em lugar da rivalidade, expressão de verdades como a dor por amor, a devastação pelo abandono e a força e capacidade de superação.
O lamento geral – não apenas do expressivo público feminino que ela encantou e para quem cantou – conquistou uma das maiores audiências nas redes sociais no mundo. Não por acaso, suas letras causam efeito de verdade, as pessoas se identificam. Marília fala do que todos sofrem.
No estilo sofrência, ela dançou com o sofrimento e abraçou a carência representando tantos corações. Foi sensível às histórias de vida das mulheres traídas, abandonadas, prostitutas e as mais modernas e liberadas.
Solidária aos sentimentos e sofrimentos causados pelas dificuldades dos amantes, ela cantou dores de mulher, agora sujeitos da própria vida, não carecendo se submeter. Apesar de traídas e devastadas, elas continuam amando. Das prostitutas apaixonadas, das que vão afogar a tristeza.
Ela deu voz à difícil relação com a falta no feminino. Tocou o que disse Lacan da impossível relação sexual plena, isto é, fazemos amor, mas ele não faz um par perfeito. Falou do amor, do amuro entre um homem e uma mulher causado pela pequena diferença que faz de cada um absolutamente único a gozar de seu corpo ao seu modo.
No amor, há impossibilidade de fazer de dois um. Encontrar a metade da laranja. O amor é droga pesada, e perdê-lo provoca crises de abstinência. Falta que dói no corpo. Embora seja grande a demanda por ser a única, totalmente amada, a relação entre dois inclui a falha humana. Amores são imperfeitos. Sempre. Nenhuma vida a dois pode ser compartilhada sem respeito à extrema e sutil diferença de cada um.
Espinho na carne dos apaixonados. O desejo granjeia livre pela vizinhança quando saciado. O amor não é capaz de manter todo o desejo fixado num só objeto, mas faz possível sustentar uma escolha e mantê-la por lealdade, parceria.
Marília cantou a mulher da vida, a mulher casada, a mulher amante, a ex-mulher que superou a perda, o desprezo, a traição, a devastação, a vitória. A mulher livre para amar, beber, fazer por desaforo e viver com liberdade. Empoderou, como dizem hoje.
Ela se tornou imortal ao transmitir sua letra. Como os Mamonas Assassinas, que, com semelhante fim, deixaram a sua marca. De alma generosa e grata, ela promoveu shows em praças públicas para alegria da galera que a elegeu rainha, retribuindo, compartilhando a sofrência.
Grande figura que em sua breve passagem pela vida fez e aconteceu, deixando sua marca original. Vai, Marília, brilhar entre as estrelas do firmamento, para onde ecoarão suas músicas, cantando agora a saudade de seu breve tempo entre nós.