Semana passada, comentei o livro “Mal-estar na civilização” (1930), no qual Freud estudava sobre os sentimentos sob uma perspectiva mais científica e menos supersticiosa. A religiosidade também não lhe convencia e perseguiu uma teoria que mais racionalmente lhe atendesse.
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Tragédias? Busca pelo prazer não pode superar responsabilidade com a vidaFeminicídio: o amor idealizado e apaixonado não suporta perdaTemos o trabalho de dar sentido à vida ou ela não terá nenhum valorA maternidade é a linguagem do afeto, seja positivo ou negativoÉ impossível ser totalmente felizA verdadeira (e preciosa) herança de pai para filhoSegundo Freud, o nosso Eu seria nossa forma de vínculo com o mundo externo, já que não nascemos com o vínculo instintivo, como os animais. Estes sim permanecem vinculados à natureza, sobrevivem com seu saber instintivo sobre o que fazer. O homem não.
Ele nasce desvinculado e vai se vinculando a partir do contato com seu cuidador, a voz, o calor, a satisfação das necessidades sem as quais, prematuro, não poderia sobreviver. A diferenciação entre a criança e o seu cuidador vai-se fazendo gradativamente em resposta a estímulos até que ela se perceba dona de seu corpo e se reconheça. Fora e dentro vão se fazendo claros e não sem custo.
Assim desenvolve seu sentimento de si mesmo, de seu eu. Ele se prolonga para dentro sem fronteiras nítidas numa entidade inconsciente que é o Id. O Eu é como uma fachada.
Pelo menos para fora, com relação ao mundo externo, ele apresenta fronteiras precisas. Somente numa única situação sua posição se altera consideravelmente e é capaz de suscitar problemas de variadas magnitudes chegando a um estado patológico.
Diz Freud que no auge do enamoramento a fronteira entre o Eu e a pessoa amada ameaça desaparecer. Contrariando todos os sentidos, o apaixonado afirma que o Eu e o Tu são um e está preparado para agir como se assim fosse. Já se pode ver para onde vamos...
Em estados doentios do Eu, processos mórbidos se fazem observar na delimitação entre o eu e o mundo externo. Partes do próprio corpo, componentes da vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos nos surgem como alheios e não pertencentes ao eu. Outros são atribuídos ao mundo externo e a outras pessoas, embora suas raízes estejam no eu, porém não reconhecidas e admitidas.
O Eu pode adoecer, sofrer transtornos, suas fronteiras não são permanentes. Podemos então deduzir depois disso que os crimes de amor, os passionais, acontecem quando este um, percebido pelo apaixonado, ameaça romper a unidade.
Quando o amante percebe que perderá parte de si mesmo representada pelo outro é como sofresse uma amputação insuportável e esta parte amputada deve, preferencialmente, morrer. Será melhor do que adquirir autonomia, deixando vazio no seu lugar dentro do Eu, onde até então era parte, sendo o apaixonado incapaz de processar este luto de parte de si perdida.
O crime de amor é uma declaração de morte por uma separação impossível de suportar. A morte do outro, sinônimo do Eu. No terror de admitir a perda, o Eu enlouquece. Frente a tal ameaça, o Eu cai em distúrbios patológicos significativos. A ausência de limites, provavelmente de uma regressão ao estado em que a criança ainda não efetuou a separação. O esquecimento não significa a destruição das memórias afetivas deste tempo fundido com a mãe ao qual se deseja retornar.
Será rememorado sempre paralelamente à autonomia e gradativa separação. Caso regressemos à fusão com um novo amor, teremos problema. O amor conduz os amantes a ansiarem ser um para jamais se perderem, porém, a realidade desmente a possibilidade de realizar esta fusão regressiva e nos faz cair na realidade da castração: que cada um será sempre apenas um e dividido. E da recusa desta castração... só se pode esperar o pior.