Jornal Estado de Minas

PSICANÁLISE

Alguns não suportam a perda, mesmo quando são perdas da dor

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Não há como contabilizar o que se perde numa cena como a da guerra. Escombros por todo lado, bombas zoando pelo céu em tempo real para esmagar tudo e todos. A Ucrânia chorando, se esvaziando, gente perdendo tudo, e o mundo em compasso de espera. Nenhuma intervenção efetiva será possível, porque o circo pode pegar fogo. Sanções não são suficientes.





E é bem provável que isso venha a acontecer, penso quando assisto aos jornais. Não se vê o fim da crise, apenas o arraso causado. Já desisti de esperar que se resolva alguma coisa com intervenções que só alastrariam mais e mais o território desolado. O que se vê deve ser o começo do fim do mundo. Xeque-mate.

Muitos de nós desejam um recomeço, uma nova era de gente fina, elegante e sincera. Preservar, recuperar, considerar o outro, comida natural, menos carne, agrotóxicos, fast foods. Água usada com parcimônia, sem buraco de minério, sem garimpo ou desmatamento. Uma vida melhor seria como a dos índios, se não tivessem aqui ancorados os portugueses, espanhóis e franceses...

Se formos atualizar as perdas desde que o mundo é mundo, a lista rodaria o planeta mil vezes e não teria fim. Nesta vida, digo nossa geração, a lista provavelmente será longa também.

Cá para nós, as perdas fazem parte da vida e para cada caminho escolhido, outros são abandonados. Não porque o desejo não passeou por ali, mas é que só dá para viver uma vida. Seguir um caminho exige muito de nós. Inclusive aceitar esta castração de trocar por um todos os outros.





Perdas são proporcionais aos anos vividos e não contabilizáveis, pois algumas a gente supera, esquece, deixa pra lá. Outras, a gente não esquece. São perdas de gozos e prazeres. Às vezes, são também perdas da dor e ainda assim são perdas. O segredo da sobrevivência está associado à capacidade de fazer luto, de desapegar, ficar com boas lembranças e seguir a vida.

Assim seria mais fácil. Mas há pessoas que têm uma especial dificuldade com o luto, com perdas e danos. Todos temos dificuldades com as nossas perdas e imaginamos que para o outro seja mais fácil. Mas esta idealização do outro nos faz diminuir nossas próprias potencialidades, colocando o outro sempre mais capaz. O que nem sempre é justo ou verdadeiro.

Ser imparcial consigo mesmo é coisa para poucos. “Justiça seja feita” é uma frase corrente, mas nada simples no cotidiano, porque ser justo conosco requer uma imparcialidade que não temos. E não só isso, requer também reconhecimento próprio e dos nossos motivos lícitos vindos de uma história não contada e nem por isso completamente ignorada.





O inconsciente guarda marcas que tem seus efeitos, mas não apresenta a história trancada, esquecida e a porta dele é vigiada por um cão de três cabeças (Cérbero), mas, para nós, chamado censura.

Nos restou uma culpa difusa e mal explicada sobre os ombros. Um manto de chumbo pesado que nos engessa e cerceia. E determina que sejamos punidos com insucessos e impotências autoagenciados, um tributo daquilo que nem é nosso, mas tomamos como nosso. Porque da missa nem sabemos a metade...

E haja estômago para lidar com o de dentro engolido sem água e o de fora explodindo o mundo. Mesmo assim precisamos manifestar o repúdio sentido pelo desrespeito, o assassinato frio, a invasão de um território que se quer separado.





A Rússia age como marido traído que, não suportando a perda e separação, prefere matar a mulher que ama. As guerras – assim como as tragédias na vida privada – são resultado da falta de escuta. Do fracasso da palavra. Da incapacidade para o luto, para as perdas e de querer impedir o desejo de vagar livre como é de seu feitio.

Enquanto houver um que impõe sua verdade como única preferindo massacrar o diferente veremos mergulhar, num abismo sem fundo, toda humanidade possível.