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Estado de Minas Em dia com a psicanálise

No "Berro de Maria", livro de Inez Lemos, cabem todas nós, uma a uma

Que mulheres e homens possam atravessar as páginas e suportar a potência das palavras da autora, que brame contra tudo aquilo que é injustiça e preconceito


28/08/2022 04:00

Ilustração da coluna em dia com a psicanálise

No “Berro de Maria” cabem todas nós, uma a uma. São páginas de desabafo, desagravo, berro que se solta de dentro do peito e aqui encontra voz para tanto por dizer, expressar “a força de se fazer homem para dar conta das coisas que só as mulheres sabem fazer”.

Inez Lemos solta a voz que jorra forte nas páginas de sua escrita e nos pensamentos de uma menina entre cinco irmãos. Menina que queria sair para pescar, mas dizia a mãe que só depois da obrigação a cumprir por ser mulher. O machismo estrutural, falocêntrico, foi cunhado a várias mãos – femininas e masculinas.

Na simplicidade do sertão – da horta e do almeirão – brota e floresce a fantasia do chão batido de cimento colorido pela emoção. Assim também marca com palavras, o afeto no papel. O afeto afeta e faz ampliar limites com palavras quase nunca escutadas. Que foram berradas de cima da cadeira, na cama e no chão.

Desde que as mulheres oitocentistas abriram o espaço para o recalcado se expressar em busca de satisfação foram salvas pela revolta que fez sintoma. Histeria, o berro da angústia registrada no corpo feminino que escolheu a sintomatologia da conversão e denunciou o prazer proibido. Ao escutar esta mulher, Freud fez sua descoberta. Nas palavras de Inez “mulher nasce da invisibilidade, levanta a voz ou sucumbe”.

Entre ficção e autobiografia, prossegue a menina do interior de São Paulo que decidiu estudar e seguir seu próprio caminho. Atravessou o Rio das Velhas, apeou em Cordisburgo e se diz salva por Guimarães. Sua formação em história, sociologia e psicanálise estão presentes na narrativa.

Não bastasse vir para Minas, descreve nossas origens cunhadas em bateias de ouro, nossas montanhas e cachoeiras, se deslumbra com a arquitetura barroca, que descreve como nobreza esculpida em anjos e santos. Sacra e eterna. Encontrou aqui gente simples, cabocla, que demora a aderir a modernidade.

A autora, na voz de sua personagem Maria, gestada por anos de escuta convida à reflexão permanente mulheres e homens com este livro forte, contundente, emocional e como ela mesma anuncia malcomportado. É próprio das mulheres romper com o estabelecido pelo mundo masculino e avançar por entre os mistérios do desejo para encontrar em si, na escuta de si, o lugar de sujeito de sua vida.

O livro “Berro de Maria”, lançado pela editora +DO, atingirá com certeza o coração dos leitores com a inteligência fluente, língua afiada, e ao mesmo tempo, conotação poética que os deixarão, segundo o poeta Murilo Antunes, boquiabertos, estupefatos.

Um berro lancinante, protesta contra o preconceito a intolerância e o descalabro diante da derrocada nacional, da cegueira da sociedade, do individualismo institucional e egoísta dos perversos.

Que sua lucidez alcance amplitude e repercuta nas almas que desejam um mundo possível, menos injusto e mais igualitário. Que sua loucura conclame mulheres ao prazer e ousadia da liberdade. Para que enfrentem as ameaças e violências criminosas e não se dobrem calando seu berro. Que muitas mulheres e homens possam atravessar estas páginas. Suportar a potência das palavras desta autora que brame contra tudo aquilo que é injustiça e preconceito. Ela berra verdades que buscam a luz.
Nesta bela escrita nos deparamos com um convite, mais do que isso, somos conclamados a recusar a maldição herdada de um outro injusto e corruto, expropriador e estuprador e reescrever nossa história.

Reivindicar respeito e ética nas relações afetivas, comerciais, é reivindicar poder. Abandonar a política da compensação, do filho lesado que para responder ao ressentimento deve sempre levar vantagem. Deixar cair o véu de mentiras sustentadas por uma sociedade hipócrita, que ainda tem muito que andar para sair dos abusos do colonialismo.

Enfim é um berro que expressa num sonoro amém as letras do axioma lacaniano que diz: “Não existe relação sexual”. Com isso, aponta para o gozo de cada um no próprio corpo e, mesmo que compartilhado, nunca realizará o sonho de fazer Um. Belíssimo livro.

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