Jornal Estado de Minas

EM DIA COM A PSICANÁLISE

Faço meu o recado que o escritor moçambicano Mia Couto mandou ao Brasil

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O africano mais brasileiro que conheço é Mia Couto. Neste momento de tensão, oposições, quando todos estamos à flor da pele, temos de tomar cuidado, muito cuidado. De nada adianta brigar. A democracia é assim: cada um pode se manifestar livremente em relação ao que acredita. Sem medo de ser feliz.





No entanto, não é o que se pratica agora. As pessoas estão prontas para a briga, elevam a voz. É irmão contra irmão, amigos contra amigos... E assim estamos nos mostrando extremamente autoritários, conservadores e pouco democráticos. O discurso do ódio invadiu nossas ruas.

Quem diria que depois da ditadura, depois de alguns bons anos de democracia, o conservadorismo despertaria de forma despótica, em um vale-tudo assustador.

As eleições são uma festa democrática e vai vencer o candidato que tiver maior apoio do povo brasileiro. E os eleitores que forem derrotados, se democráticos, farão oposição, o que é bom, muito bom, pois assim é a democracia, feita com participação popular, pacífica e respeitosa com o outro na sua diferença.

Em nome do amor ao Brasil – nossa pátria amada, salve, salve, nosso pendor da esperança –, trago hoje a declaração de amor escrita pelo moçambicano Mia Couto, que citei no início, pois acredito que devemos nós também, agora, professar amor no lugar do discurso do ódio ao outro, ao que pensa diferente. Quem sabe cola?

“Aconteceu-me a mim o oposto do que sucedeu com Pedro Álvares Cabral: encontrei você, Brasil, pensando que era a minha própria terra. Não tive nem barco, nem mar. Quem viajou foram vozes brasileiras que entraram na minha casa como se não houvesse porta. Essas vozes falavam de uma nação distante que guardava África nas suas raízes e misturava África nas suas sementes. Na minha varanda, desembarcou o mar de Dorival Caymmi, desembarcaram os versos de João Cabral, de Bandeira, desembarcou a prosa de Drummond, Amado, Machado, Rosa e Graciliano. Havia um idioma que era o de Moçambique, mas que já era um outro. E havia um lugar que me abraçava com os meus próprios braços. Esse parentesco era motivo de orgulho dos moçambicanos que, enchendo o peito, avisavam ao mundo: olha que temos um irmão que se chama Brasil!”

Enfim, Mia Couto visitou o Brasil em 1987, dois anos depois da democracia reinstalada, encontrando em nosso país o pretendente com quem tantas cartas de amor trocou. Apaixonou-se pela gente brasileira, o Brasil que romantizou. Como os apaixonados, ele não pode sair do fascínio e da idealização própria dos apaixonados. Nesse momento, nenhuma decepção.





Couto não percebeu, naquele ano, a dimensão da força adormecida e reprimida que ressurgiu e vigora neste momento. O retrocesso que pode ser abandonar o secularismo – separação de Igreja (Tradição, família e propriedade) e Estado –, considerado avanço na maioria dos países modernos. Vejam, por exemplo, os problemas do mundo islâmico.

Mia Couto não pode ver, naquele ano, o que estava oculto, reprimido. O tradicionalismo, o conservadorismo e, por que não dizer, o colonialismo, que gradativamente davam lugar a políticas de inclusão e tolerância das diferenças, bem-vindas em uma democracia.

Assim sendo, agora, haja vista a divisão e as divergências veladas, surge outro olhar, não sem amor, mas mais prudente, avisado, que dá lugar à ilusão de que existiria aqui concordância da maioria pela multiplicidade. Acho que nem nós próprios sabíamos o que estava adormecido.





Mia Couto avistou, enfim, que todo diamante tem jaças, imperfeições. Ele avistou a divisão, a brecha e tudo o que pode advir de uma verdade que se quer única, sendo múltipla. Viu divisões e discórdias, que à primeira vista escapam aos apaixonados: a realidade sempre desmente essa idealização. No entanto, e felizmente, nem sempre as diferenças esgotam o amor que pode resultar de uma paixão.

O amor, sempre imperfeito, nunca faz de dois um. Antes, nos faz tolerantes, compreensivos diante do outro na diferença. Esse amor é ainda o mais importante. Só que pode revirar-se em seu avesso, o ódio. Sim, seu par, pois o contrário do amor é a indiferença.

Ao final de sua carta de amor, Mia lamenta ver que seu Brasil, mais de sonho que de realidade, tornou-se, agora, país mais próximo de um pesadelo.

Seus votos e desejos expressos ao final são para que superemos nossa passagem pelo inferno: “O Brasil que ganhou o respeito do mundo não pode ser representado senão por alguém que celebra a vida e que defende o tesouro maior da nação brasileira: a infinita diversidade do seu passado e pluralidade do seu futuro. Não é apenas um desejo pessoal. É uma certeza: você vai-se levantar, vai sacudir a poeira e vai dar a volta por cima.”

• Confira a íntegra do texto de Mia Couto em https://www.outraspalavras.net/poeticas/mia-couto-brasil-dara-a-volta/